quarta-feira, 9 de outubro de 2019

DICAS PARA LÍDERES DE IGREJAS

...ou "quem anda para trás é caranguejo"...

O crescimento de igrejas nessa primeira década do Século
XXI se transformou em assunto digno de atenção por parte de seus líderes.
Há pouco mais de trinta anos no Brasil, existiam duas religiões dominantes: católicos e protestantes. Ou você era uma coisa ou você era outra. É certo que entre os protestantes existiam pequenas facções ditas tradicionais ou pentecostais. Então era mais fácil: se você gostasse de santo e de missa, você era católico e se você não gostasse de santo, você era protestante. Se na sua igreja protestante o culto acontecia com as portas abertas, você era tradicional, mas se na sua igreja tinha um culto onde as portas permaneciam fechadas na hora da oração, você era pentecostal. Simples assim.
Depois da década de 80, ainda no século passado, novas igrejas e ministérios surgiram numa velocidade meteórica e não pararam mais de aparecer. É preciso muito cuidado para não sucumbir diante de novas e prósperas denominações emergentes que crescem com a força de um tsunami, para usar uma palavra bem atual.
O líder de uma comunidade eclesiástica precisa seguir algumas regras ou passos para que seu povo cresça e apareça numa sociedade marcada pela competição neoliberal. Para isso é preciso planejar bem as coisas.
Em primeiro lugar, acabe com o modelo de liturgia de culto que você conhece: música de prelúdio, momento de oração, oração pastoral, avisos da semana, hinos e cânticos, ofertório, mais avisos, pregação, apelo e bênção apostólica (com ou sem o tríplice amém).
Isso é cansativo, meu amigo e as pessoas não têm mais tempo a perder. Há muita coisa legal pra se fazer no domingo. O finalzinho do Domingão do Faustão com aquelas videocassetadas é imperdível. Se o culto demorar muito, a gente perde a eliminação do BBB e a poesia do apresentador. Se tiver paredão surpresa então, é um crime estar na igreja numa hora dessas. Divida então o culto em
três partes: louvor, palavra e oração. Insira discretamente o momento de ofertas no louvor, sem que eles parem de tocar, porque afinal de contas tem luz e telefone para pagar.
O louvor, requer alguns recursos, sem os quais é impossível cultuar a Deus. Primeiro, é o instrumental. Teclados como Roland ou baterias Yamaha com pratos Zildjian, fazem a diferença na qualidade musical. Não seja “pão duro” nessa hora. Microfones sem fio Shure, mesa de som Mackie com pelo menos 36 canais, monitores de retorno, projetor da Sony e por favor, vozes mistas com divisão em três níveis, pelo menos. Pode ser contralto, soprano e tenor. Nunca inicie “a seco”. O piano começa a tocar uma música suave e uma mulher (sem preconceito, é um diferencial) pergunta: “quantos estão preparados para a descida do Espírito Santo aqui nessa noite”? Claro que não interessa se o Espírito Santo já desceu há dois mil anos lá no Pentecoste. O cliente, digo,
o fiel precisa ter a sensação de que vai ser visitado pela divindade, que veio ali só para vê-lo e, depois do culto, volta para o seu trono no céu. Não se preocupe com esses detalhes teológicos. Na verdade, é bom não teologizar muito, senão as pessoas vão pensar que você é teólogo e todo mundo sabe que teólogo não tem unção.
A citação do lugar e da hora é importante. Jamais esqueça dos termos “aqui” e “nessa noite”.
A palavra também precisa ser tratada com cuidado. Esqueça aquelas mensagens ou sermões de uma hora, uma hora e meia. A Polishop vende seus produtos em pouco mais de um minuto. Se você der dois minutos de atenção para ela, você compra o redutor de celulite, o exercitador de abdômen, a capa para guardar os dois, a esteira e o espelho para você ver como sua barriga está um tanquinho.
Meu jovem pastor, você já reparou como é desconfortável
carregar uma bíblia debaixo do braço em dia de chuva? E no carro?
Não há lugar para ela. Se você colocá-la sobre o painel ela escorrega, se você colocá-la no porta-luvas, você esquece. Se você colocá-la no banco de trás, as crianças pisam em cima. Sem falar na malandragem. Eles vêem um cara com uma bíblia e já assaltam.
Sabem que no bolso dele vai uma oferta, um propósito e se for início de mês, o dízimo. Então, acabe com esse negócio de mandar os outros trazerem a bíblia para a igreja. É pesado, desagradável, vagaroso e sempre tem um irmãozinho que olha para você e pergunta: “onde fica Habacuque”? Coloque o texto no telão! O Power Point do Office faz milagres com seu texto bíblico. Ele surge de baixo pra cima, da direita para a esquerda, tipo máquina de escrever colorida, um show. Dá pra colocar um fundo de tela com a mão negra de uma criança segurando a mão branca de um adulto, ou ainda um homem de costas com os dois braços abertos em frente ao por do sol, sem atrapalhar a leitura do texto.
No púlpito, faça uma coisa simples: retire o púlpito. Coloque uma estante de acrílico. As pessoas querem ver o seu sapato de cromo alemão, seu terno Armani e sua gravata Yves Saint Laurent. O paletó fica sempre na cadeira, gravata meio folgada e mangas arregaçadas para dar a impressão de trabalho e dinamismo. Use lentes e aposente os óculos para você não ficar colocando e tirando os óculos enquanto prega.
A pregação precisa ser um misto de Stand Up Comedy com discurso de protesto comunista. Você precisa ser engraçado e enfático. Precisa passar a mensagem com ousadia e alegria. Você pode contar fatos engraçados antes de tornar-se evangélico, principalmente episódios da área financeira. Não é de bom tom você dizer que vivia bêbado ou drogado antes de entrar para a igreja. Deixe isso para os pastores de periferia. Mas é legal você contar que não tinha um centavo para pagar o aluguel e hoje tem
um “4” suítes, andava de bicicleta e hoje tem uma SW4 Hillux, não tinha dinheiro para por crédito no celular e hoje tem um iPhone. E por mais que tenham sido os próprios fiéis que tenham te dado essas coisas, diga sempre que foi Jesus.
Durante a mensagem você pode usar de trocadilhos e afins como recurso de humor. Ao invés de “macumba”, diga “boa cumba” e diga que fala assim para envergonhar o inimigo. Não diga “capeta”, mas “lá peta”, porque você não quer o tinhoso “cá” e sim “lá”. Profecias que não aconteceram, chame-as de “profetadas”.
Quando fizer uma campanha de prosperidade, diga que “quem anda para trás é caranguejo”. Quando alguém disser que é crente você diz: “crente até o diabo é”. Essas palavras e expressões podem parecer ridículas, mas acredite, meu amigo e jovem pastor: eles adoram! Não deixe também de ridicularizar o inferno. O diabo é cheio de “marmota” e já está derrotado. Ele foi tão envergonhado que não tem nem a chave da própria casa. O diabo bate em retirada e não consegue prevalecer, embora ande em derredor rugindo como um leão que vem roubar, matar e destruir, mas seu destino é o lago de fogo. Diga sempre essas coisas em tom jocoso, de zombaria, de menosprezo para que seus clientes, digo, fiéis sintam a pressão do poder que você tem.
Não se esqueça de usar sempre o evangeliquês. É o socioleto do seu público. Expressões como “varão de fogo” e “mulher virtuosa”, “príncipes de Deus”, “jovem ungido”, “passar pelo deserto”, “estar na visão ou fora dela”, “subir ao Moriá”, “leão de Judá” e “vigiar em santidade” precisam ser bem exploradas. Quem não sabe, se adapta rápido.
Ainda sobre a pregação, cuidado para não se aprofundar no caráter de Cristo. Se as pessoas entenderem que precisam imitá-lo, ou viver o Sermão do Monte, ou dar a outra face, ou nascer de novo, elas irão embora, e tenho certeza de que você não quer isso.
Então, quando o assunto for Jesus Cristo, seja superficial. Coloque-o sempre como alguém que guerreia pelo seu cliente a serviço de Deus, sempre que seu cliente orar. Não caia no erro de pregar sobre a segunda vinda de Cristo. Ninguém acredita mais nisso e o culto acaba virando um tédio. Sem falar que esse assunto só serve para colocar medo em alguns que insistem em ser mais fervorosos.
Já que você não vai centralizar Jesus Cristo em suas mensagens, você precisa de novos ícones. De preferência,
humanos como nós. Coisas que Jesus fez, a gente não consegue mesmo, então, escolha com cuidado. As personagens do Antigo Testamento são mais ricas nesse aspecto. Elas guerreiam, matam, espoliam, mentem, traem, tudo o que a gente sempre quis fazer com a aprovação de Deus. As personagens do Novo Testamento
são mais perigosas, então, selecione com cuidado. Quando for falar de Paulo, use somente a frase: “posso tudo naquele que me fortalece” e não esqueça de simplificar para “posso todas as coisas”. Quando for falar de João, use somente a frase: “maior é o que está em nós”. Não caia na bobagem de citar os textos de Paulo
sobre a pobreza ou os textos de João sobre o amor. Definitivamente não dão IBOPE.
Já no Antigo Testamento você pode “deitar e rolar”. Ele tanto é rico em personagens quanto em símbolos. Você pode explorar o óleo, a água, o sal, o fogo, o martelo, a pedra, a rosa, a espada, o escudo, o manto, a lança, a púrpura, o ouro, a prata, o bronze, a serpente, o carneiro, o bode, a jumenta, e coisas que não existiam naquela época, como fotografia, jeans, relógio, desde que associados ao óleo, a água ou ao sal. Quanto às personagens, também é preciso cuidado. Ao invés de dizer que Abraão deu seu filho porque Deus pediu, diga que ele derrotou nove reis de nove reinos com 318 homens. Diga também que ele era riquíssimo. De Isaque, diga apenas que encontrou sua Rebeca: as irmãs vão se arrepiar. De Jacó, não diga que ele ficou só ou que foi feito de bobo pelo próprio tio, ou ainda que morria de medo do irmão. Diga apenas: “Jacó lutou com Deus”. Diga que só soltou Deus quando recebeu a bênção. De José, não diga que foi escravo ou prisioneiro por longos anos, mas diga que foi governador do Egito e que mandava mais que o Faraó. Muito cuidado com Moisés. Não se esqueça de que ele matou um cara. Mas o fato dele ter aberto o mar é bastante relevante. Mandar pragas nos inimigos também foi demais. Josué derrubou uma muralha e assim também as muralhas que o inimigo levanta na vida de seus clientes serão derrubadas também. Gideão derrotou 135.000 homens apenas com 300 e não levantou a espada. Sansão é demais. Ele mente, engana, e se deita com prostitutas, mas o poder ainda está com ele. Excelente exemplo! De Davi, não diga que ele tramou a morte de Urias ou que foi destronado pelo próprio filho, mas diga que ele matou o gigante. Assim também, os gigantes que se levantam em forma de dívidas ou fofocas contra os seus clientes, serão abatidos. Enfim, se Santo Agostinho, que era católico, abusou das alegorias, deixe a sua imaginação fluir, pois inventar não é pecado, sempre lembrando que “quem anda para trás é caranguejo”. Você pode criar uma capa azul para Jônatas que simboliza o céu, uma sandália vermelha para Sansão que simboliza o sangue protetor, que tem ligação com o sangue do cordeiro, uma toalha de mesa usada no palácio de Davi que cobria os pés dos príncipes e assim o manto de Cristo cobre nossos pés nos fazendo assentar em lugar de honra, onde vivem os reis, onde pousam as águias e onde homem algum jamais sonhou alcançar, porque fica no terceiro céu que acontece aqui e agora em suas vidas (não esqueça a hora e o local, lembra?).
Uma coisa que um pregador precisa entender, é que poder
está diretamente ligado ao decibel. Quanto mais decibéis, mais poder. Isso pode ser conseguido com uma parceria entre o aparelho fonador e o garoto que cuida do som na igreja. O aparelho fonador trabalha a toda potência, enquanto o garoto que cuida do som aciona os botões do efeito e do eco, juntamente com um “plus” no volume do seu microfone. A fórmula e simples: som mais alto, mais
fé; som mais baixo, menos fé. Essa é a hora em que você se sente como um orador do partido comunista atacando a burguesia. Grite e esbraveje. As pessoas precisam entender que você tem raiva do inferno, da pobreza, da dívida, da depressão, do vizinho fofoqueiro que é usado pelo diabo. Quando gritar uma expressão enfática, use sempre palavras em língua estranha, como “chebalaias” ou “decantas”, no final da frase, retirando lentamente o microfone da boca para dar um efeito “fade out”. Por exemplo, você pode dizer: “você que entrou aqui nessa noite, achando que estava derrotado, Deus me manda dizer que o seu gigante já foi abatido, chebalaias, tecomanevias, malacaias”. Não esqueça de ir afastando o
microfone. As pessoas precisam entender que você fala em línguas, mas não quer ostentar.
Durante o culto não se esqueça da interatividade. Existem
comandos importantes na interação do culto, como: “Diga
misericórdia”! “Diga aleluia”!, “Diga glória a Deus”!, “Olhe para o irmão do lado e profetize na sua vida”!, “Levante as duas mãos para o alto”!, “Coloque sua mão direita sobre o seu coração”! Não se preocupe com a movimentação. Igreja parada é igreja fria. Eles precisam de exercício durante o culto, principalmente com os braços e pescoço. Então, faça-os olhar para os lados, para cima, para baixo, levantar uma mão, as duas, sentar e levantar. Qualquer dúvida, assista a missa do Padre Marcelo que ainda tem muita dica legal.
Por fim, no momento da oração, você precisa deixar claro que é exatamente ela, a oração, que move a mão de Deus. As coisas só acontecem quando o povo ora. O poder é de quem ora, pois quando esse alguém ora, Deus é cutucado pelo poder da oração, ou seja, a fumaça chega nas narinas divinas e ele aciona o exército celestial. Então, os anjos começam a se mover. Eles estão ali, paradinhos, quietinhos, cantando “santo, santo, santo”, dia noite, num marasmo total, até que alguém ora. Aí eles pegam a ficha do sujeito, a ficha da igreja e da cidade onde o sujeito está, para que possa derramar a bênção sem equívoco. Depois, assinam a autorização de voo e vêm para cá, pagar contas, dar promoções no emprego, ferir demônios e coisas afins. Por isso a oração é um momento especial. Não perca tempo agradecendo nada nem fazendo a chatice da contrição. Apenas peça e declare. Declare a vitória, a cura e a prosperidade, basicamente essas três coisas.
Não se esqueça do Marketing. Sua igreja é a certa e as outras estão fora da visão. As coisas só melhoram quando as pessoas direcionam seu dinheiro para a sua igreja. Quanto ao título, jamais use “pastor”. É sinônimo de pobreza, como aquele cara que vem realizar o culto de calça social, chinelo e mangas compridas em cima de uma bicicleta, com a bíblia no bagageiro ou sinônimo de
corrupção, como aquele cara que limpa o gazofilácio depois do culto e vai pro motel com a irmãzinha. Com os adventos Macedo, RR e Santiago, você pode usar três tipos de títulos. Missionário, sinônimo de trabalhador do evangelho; Bispo, sinônimo de executivo bem sucedido; Apóstolo, sinônimo de empresário poderoso material e espiritualmente.
Finalmente lembre-se que o povo é massa de manobra e quer ser manobrado; doentes que querem acreditar que estão curados sem auxílio de médicos e psiquiatras; pessoas que querem pecar, principalmente se o pecado envolver dinheiro, sexo e poder.
Em suma, a regra de ouro é: “quem anda para trás, é caranguejo”!

DOIS JESUSES

No início do novo milênio, duas forças religiosas entraram em conflito dentro da mesma arena. Jesus e Jesus.
Apesar de terem o mesmo nome e esse nome apontar para o mesmo significado e mesma imagem mística, os dois se constituem como pessoas completamente distintas.
Enquanto um deles possui representantes obsoletos e fora da mídia, como padres e pastores protestantes, que o anunciam nos púlpitos, nas praças e nas casas, o outro possui representantes contextualizados, como apóstolos, bispos e missionários, bem como cantores, bandas e grupos musicais, que se encontram completamente em voga nos sites, blogs, jornais, emissoras de rádio e televisão, e que o anunciam em shows, convenções e campanhas que acontecem em hotéis luxuosos, grandes ginásios, templos suntuosos e estádios de futebol.
Um deles proporciona sucesso aos fracassados, trazendo sorte nos negócios, distribuindo automóveis com seus adesivos característicos do tipo: “Deus é fiel” ou “a serviço do rei Jesus”, ou ainda “tudo posso naquele que me fortalece”. Ele também promove o crescimento econômico dos seus protegidos, abrindo lojas, farmácias, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais àqueles que têm ousadia e coragem de desafiá-lo numa prova economicamente suicida, que consiste em dar tudo o que se possui para receber cem vezes mais. O outro quer que as pessoas vivam vidas simples, se contentando com o que têm e agradecendo pelo pouco que recebem, sem murmurações e palavras negativas típicas dos tempos de crise.
Um fornece proteção completa contra toda sorte de males, como: violência, crise financeira, doenças leves ou graves, simples ou complexas, como também protege da inveja, macumba, olho gordo, fofoca, feitiçaria, bruxaria e intriga. Quando uma dessas coisas acontece, ele se levanta e chicoteia ou fere com espada o inimigo, que cai por terra, com a cara no pó, completamente envergonhado. Ele possui alguns títulos como “varão de guerra”, “poderoso na batalha”, “terrível”, “advogado”, “juiz”, “vingador” e “tremendo”. O outro admite a possibilidade de uma vida de crises e momentos difíceis de angústia e aflição, mas pede bom ânimo, ou seja, uma atitude positiva diante da dificuldade a fim de atravessá-la de forma não tão dramática. Também ensina a perdoar e amar o inimigo como forma de gratidão ao amor e perdão divino. Não possui títulos de efeito, mas se autodenomina “filho do homem” e questiona quando alguém o chama de “bom”. Quando realiza algo fantástico ou extraordinário, pede silêncio, contrição e gratidão.
Um só é fiel a quem é fiel a ele. Requer que os seus protegidos repassem dez por cento de todas as riquezas brutas que recebem, a fim de que a proteção e o sucesso sejam completos. Frequentemente desafia seus seguidores a uma doação movida por uma fé muito parecida com uma aplicação financeira de alta rentabilidade. O outro se diz fiel porque sua natureza é assim. Daí, quando alguém o trai, ele permanece fiel porque não pode negar sua natureza. Ao invés de dinheiro, prefere que as pessoas se lembrem de viver uma vida justa, cheia de fé e misericórdia, e se alguém quer mesmo fazer algum movimento financeiro, que seja para ajudar a quem precisa, sem esperar absolutamente nada em troca.
Um se apresenta sob o estardalhaço de seus representantes. O outro é manso e humilde e não gosta muito de aparecer. No meio desse embate ideológico e religioso estão as pessoas com suas imperfeições, mazelas, erros, sonhos, conquistas e carências. Tais pessoas almejam escolher um dos dois Jesuses para se identificarem com ele, e o ostentarem como seu guia, seu exemplo e referencial de vida, para que se sintam mais seguras e otimistas em relação à vida. Algumas pessoas não escolhem nenhum dos Jesuses, por medo, insegurança, decepção ou descrença. Outras afirmam escolher os dois. Algumas se perdem completamente num emaranhado de teologias criadas do nada ou distorcidas na ignorância. Outras tiram proveito da situação e enriquecem às custas dos seus semelhantes.
Enfim, está formado o caos apocalíptico e escatológico. Dois Jesuses em plena batalha diante de uma multidão de sedentos e inseguros, que se dizem saciados e firmes por causa da fé que possuem em seu respectivo Jesus. Que vença aquele que merecer.

A MORTE DA FÉ

A MORTE E A RESSURREIÇÃO DA FÉ NO CONTEXTO BRASILEIRO.

“Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se
esperam, e a prova das coisas que não se vêem”.
Hebreus 11.1.

O fiel leitor da bíblia em língua portuguesa vai encontrar-se com a palavra “fé” por cerca de 250 vezes, número modesto se comparado à quantidade de vezes que esse par
de letras é citado dentro do contexto evangélico, seja na mídia ou nos cultos públicos.
Muito mais citada que o amor ou o serviço, a fé deveria ser daquelas palavrinhas acerca da qual nós devêssemos ter maior intimidade e domínio de seu real significado, mas tal não acontece. A grande maioria dos que dela se utilizam não entende o peso, a força, a significância de uma palavra tão pequena. Tampouco não é nossa intenção aqui perscrutar, dissecar ou espremer sua essência a fim de que ela nos mostre a verdade, até mesmo porque nesse assunto não há como ser exaustivo, pois o pequenino vocábulo tem relação com os verbetes “crer”, “acreditar”, “esperar”, e denota termos e expressões como “boa consciência”, “certeza de”, “convicção acerca de”, “firmeza em”, “fidelidade para com”, “estabilidade sobre”, “lealdade a” bem como “caráter de”. Todavia, uma rápida olhada na etimologia do termo em grego, latim ou português, já nos permite entender pela pena do lexicógrafo que a fé consiste no primeiro exercício consciente do regenerado. É um tipo de persuasão da mente de que determinado testemunho ou depoimento é
verdadeiro. Essa persuasão, fenomenalmente, não se dá de forma plenamente voluntária, mas consiste numa virtude proveniente do amor de Deus.
Contudo, a fé e a crença (esta última, não menos importante dada sua estreita relação com a primeira) não encontram hoje qualquer respaldo ou sustentação dentro desse conceito.
Na tentativa de compreender quão longe estamos do real sentido da palavra fé, seria suficiente observarmos, por exemplo, o que aconteceria se perguntássemos a alguém se um ônibus passa numa determinada rua (logicamente, se dirigíssemos essa pergunta a alguém que não tem vínculos com a empresa que fornece o serviço de transporte), uma das repostas possíveis seria: “creio que ele passa lá, sim”. Quando compartilhamos com alguém a intenção de realizar alguma visita a um amigo ou mesmo
um ente querido, um dos comentários possíveis é: “liga sim, creio que ele está em casa agora”. Aparentemente, na modernidade e na pós-modernidade, crer se constituiu num sinônimo de incerteza, o que acaba sendo uma espécie de paradoxo antagônico da fé em seu sentido original.
Essa desinformação, aliada ao fenômeno de substituição do centro do culto cristão, faz com que um novo sentido para a palavra fé seja construído. Essa nova construção demove antigos fundamentos de caráter inteiramente espiritual, etéreo, subjetivo e transcendente para um novo fundamento mais palpável, objetivo, pragmático, temporal, e por que não dizer, concreto.
Naturalmente esse fenômeno consegue produzir na Igreja contemporânea uma mudança na ótica da pregação da fé evangélica, transformando-a em algo que se pode associar tempo e espaço, bem como aos sentidos, distanciando o termo de preceitos filosóficos sinônimos de “crer”, “acreditar” e “esperar”.
A Igreja contemporânea tem transformado a fé em algo que se pode ver, ouvir, sentir, tocar e, literalmente, cheirar, dando ao termo um enfoque completamente antropocêntrico. Nesse contexto, a fé tem sido materializada a fim de atenderem aos propósitos daqueles que a manipulam ou manipulam os que da fé procuram se servir para atender necessidades primárias e urgentes, muitas vezes causadas por lacunas deixadas pelo governo, pelo sistema, pelos infortúnios e desencontros da vida pós-moderna.

A materialização da fé 

Grande segmento da igreja pós-moderna tem buscado promover aquilo que poderíamos denominar de “materialização da fé”. Tal fenômeno se origina nas sensações palpáveis inerentes ao homem, passa pela resolução objetiva de seus problemas, e tem seu ápice na produção em série de variados tipos de amuletos cristãos, usados para toda a sorte de necessidades.
Nos cultos públicos de adoração observam-se em nome da fé, gritos, pulos, sopros, coreografias, socos no ar e manifestações emocionais das mais estranhas e adversas a fim de produzir uma espécie de ambiente propício à ação divina, ou seja, para que a divindade perceba e entenda que o que está sendo expresso fisicamente é uma manifestação genuína de fé. É provável que se entenda que a ação soberana de Deus precise de algo como um “heliporto” a fim de aterrissar a “nave do poder” em Sua própria igreja, ou pior: como se Deus fosse uma entidade classificável nos moldes das entidades das religiões afro-brasileiras, que necessitam de um estado anímico específico de seus incorporadores a fim de baixarem em seus cultos.
Esse fenomenal processo de materialização também faz uso da simbologia do Antigo e do Novo Testamento, promovendo um dos maiores negócios da história do Brasil, que consiste na venda de “ilusões” através de símbolos concretos. Para isso conta-se com o “marketing” utilizado na propaganda das virtudes da própria instituição religiosa que encabeça o “grande negócio”, a fim de solidificar a ação do poder divino dando ao fiel a sensação de palpável em relação a determinada igreja. Isso faz com que o fiel contemporâneo busque um encontro com Deus em endereços específicos que pode facilmente conseguir no “horário nobre” de seu canal favorito de televisão. Nesses endereços, em cima de bancas armadas nos templos pode-se adquirir a preços populares o óleo de oliva do Jardim do Getsêmane, a rosa de Sarom, bem como frascos com o perfume da referida rosa, caixinhas com a terra do monte Sinai ou o sal do Mar Morto, frascos contendo a água do rio Jordão e ainda uma série inominável de souvenires da Terra Santa, que têm o estranho poder de materializar aquilo que é imaterial: a fé. Longe ou perto de qualquer associação com a famosa “venda de relíquias” ocorrida na Era das Trevas, o “consumidor da fé” pode facilmente adquirir a espada de vidro que deve ser quebrada para que o óleo contido nela seja derramado para a unção de bens móveis e imóveis, bem como partes do corpo do usuário, objetivando a palavra que significa o resultado, o mais imediato possível, da fé: a Vitória.
Mas não é só a Bíblia Sagrada em seus dois testamentos que é explorada e vilipendiada em sua simbologia, mas o grande negócio da fé consegue realizar operações de importação e consumo dos mais diversos símbolos usados nas religiões espiritualistas e de mistério, como o sal grosso, a vela perfumada, o incenso, ramos de arruda e outras plantas infrutíferas, bem como as roupas brancas, o sal grosso, as ervas e seus banhos, os mantras incansavelmente repetidos para obtenção de bênçãos, além de seus termos bem específicos que uma ou duas décadas atrás jamais poderiam ser associados ao cristianismo como: corrente, novena, descarrego e oferenda.
O triste fato é que, longe de parodiarmos Friedrich Nietzsche, podemos afirmar sem sombra de dúvidas: A fé está morta! Foi assassinada debaixo de nossos narizes e olhos perplexos. A genuína fé morreu ou, no mínimo, foi transformada em algo que nada tem a ver com sua essência original e, se aqueles a quem podemos chamar
remanescentes da pregação do genuíno Evangelho, que ainda entendem a fé em seu sentido mais primitivo creem no que pregam e ensinam, necessitem tomar a difícil decisão que oscila entre o seu sepultamento ou a promoção de sua ressurreição. Para isso, é necessário observar alguns bons e velhos pressupostos.

Objeto, ideia e natureza: importantes aspectos da fé bíblica.

O primeiro pressuposto importante e digno de toda a observação é que objeto da fé é a promessa de Deus ao homem que está contida em Sua palavra, ou seja, a fé tem
como objeto um conjunto de poderosas palavras. Elas foram geradas, produzidas, para serem ouvidas, assentidas, gravadas e cridas. Simples! Nada de objetos, amuletos, relíquias ou coisas do gênero. 
Segundo, é que a ideia primária da fé é a confiança. Isso faz o homem confiar em algo prometido que certamente acontecerá. Promessas como “Estou convosco todos os dias”, “Jamais abandonarei”, “Eu lhes dou a vida eterna”, “Ninguém as arrebatará (as ovelhas) da minha mão”, ou “o maligno não lhe toca”, devem ser entendidas à luz da eternidade, da transcendência, da espiritualidade.
Há também o fato de que a natureza da fé é a certeza, sentimento que suplanta qualquer visualização ou sensação epitelial, e que se reporta a coisas que se esperam e a fatos que não se vêem. Esse pequeníssimo conjunto de pressupostos clama aos ouvidos
dos pregadores da Palavra de Deus como vozes de um morto emérito, sepultado, pranteado, mas que ainda geme através da força de sua passagem existencial, cobrando
deles uma responsabilidade ativa maior que suas próprias forças, responsabilidade esta só entendida e viabilizada à luz da própria fé.

A grande responsabilidade do pregador da Palavra de Deus

O grande e atual desafio do pregador da Palavra de Deus é mostrar ao homem contemporâneo brasileiro a fé em Jesus Cristo assim como se mostra as formas e as cores das coisas a uma criança recém-nascida que abre os olhos, ou mesmo a um cego que ficou vários anos sem ver a luz.
O pregador evangélico, e por que não dizer, profeta contemporâneo, deve ensinar às criaturas de Deus que a fé pode produzir muito mais que um ansiar por melhorias de vida, o que um estado razoavelmente governado pode proporcionar sem esforços mirabolantes.
O profeta pós-moderno precisa ensinar a todos que o homem deve voltar-se às coisas muito mais importantes do que o simples saciar de necessidades produzidas pelas
lacunas deixadas pelo governo.
Necessita o profeta de Deus alardear que as injustiças sociais não são conspirações demoníacas forjadas no inferno para diversão das hostes demoníacas, mas resultado de uma construção social irresponsável e descomprometida com o ser.
O exercício da fé não deve produzir o sofrimento e o sacrifício de uma população já sofrida e sacrificada pelo descaso do poder público, mas deve produzir uma genuína, e por que não dizer saudável, união com Jesus Cristo, participação na plenitude de Sua vida, paz, em todas as esferas possíveis ao homem pleno, consigo mesmo, com Deus e com o próximo, certeza de salvação e santificação.
Que Deus abençoe seus verdadeiros profetas! Que a fé que professam seja real em seus corações! Que a ação daquele que convence o homem do pecado seja crida por
eles com mais intensidade ainda! Que a essência do perfume da vida e da morte seja espalhada, mas que a vida tenha narinas mais sensíveis, ou seja, ouvidos mais atentos e joelhos mais flexíveis!


Agosto de 2004.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ATENÁGORAS, Bispo de Atenas. Padres Apostólicos, Volume I, Coleção Patrística. Ed. Paulus. Tradução: Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin. 1986.
BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. Versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, de acordo com os melhores textos hebraico e grego. Rio de Janeiro. Imprensa Bíblica Brasileira. 1993.
JAGER, H. J., Palabras Clave del Nuevo Testamento Vol 1. 1ª Ed. FELiRe, Barcelona. 1999.
HODGE, Charles, Teologia Sistemática. 1ª Ed. Hagnos, São Paulo, 2001.
TUCKER, Ruth A., Até aos Confins da Terra: Uma História Biográfica das Missões Cristãs, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1996.
WILKINSON, Bruce. A Oração de Jabez. Trad. Emirson Justino. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2001

TODO MUNDO QUER IR PARA O CÉU

Estamos cercados de cuidados para não morrer.
É fato que o homem da antiguidade morria com muito mais facilidade. Havia guerras que dizimavam jovens, e quando isso não acontecia era uma tragédia perder um dedo ou uma mão, ou até mesmo ter uma hemorragia. Na atualidade há um esforço mundial para que não haja mais guerra em parte alguma do planeta, a despeito da teimosia de alguns. No passado, homens mutilados eram homens
inutilizados. Hoje, alguém mutilado pode até ser presidente de uma nação. Os desastres naturais não podiam ser previstos, como furacões e erupções, e muita
gente era pega de surpresa com terremotos e tornados. Em nossos dias, quase todas as emissoras de rádio e televisão, aberta ou fechada, bem como toda a internet dá a previsão do tempo e avisa quando a coisa está para “ficar preta” – alusão à cor das nuvens, naturalmente. A expectativa de vida era mínima, 30 ou 40 anos, talvez, e ser velho era sinal de sucesso, pois era um indicativo que tal pessoa teve sabedoria e prudência suficientes para se manter vivo, e mesmo assim, há um salmista bíblico
que diz que velhice é um sinônimo de canseira e enfado. Hoje, o Guinnes World Records procura quem tem bem mais de 100, e pasmem – paga um prêmio milionário
pro vovozinho ou vovozinha que fez da linha do tempo uma espécie de “elástico do tempo”.
Nos tempos pós-modernos, evitamos o colesterol, o excesso de açúcar, praticamos exercícios com frequência, e se não o fazemos, existem intervenções cirúrgicas para desobstruir as artérias, cirurgias de redução de estômago para curar o diabetes ou mesmo obesidade. Oncologistas se superam a cada dia. Geriatras comemoram o sucesso na longevidade humana. Pediatras bombardeiam as crianças com uma gama imensa de vacinas. Se alguém nasce com algum “defeitinho de fabricação”, não há motivos para preocupação. Próteses auditivas, implantes, lentes, braços e pernas mecânicas garantem o bom funcionamento do corpo humano. Acabou a ereção? Viagra! Acabou o humor? Serotonina! Acabou a paciência? Terapia! Sobrou gordura? Lipoaspiração! Faltou músculo? Silicone! Boca murcha? Botox! Espirrou? Corra para o hospital porque pode ser virose ou alguma coisa letal que se disfarça de resfriado para enganar os “trouxas”. Ninguém mais morre de gripe, diarreia ou tuberculose. Só otário morre de malária ou febre amarela. Banimos a bexiga, a doença de chagas, a coqueluche e a tosse comprida. Ficou sem graça dizer que determinada música ou novela é a “coqueluche” do momento, simplesmente porque ninguém mais sane o que é “coqueluche”. O homem pós-moderno baniu termos como “velho” e “idoso”, preferindo dizer que alguém pertence à terceira idade, à melhor idade ou idade de ouro. Há uma verdadeira revolução na medicina, acontecendo bem debaixo dos nossos narizes, com um único intuito: esticar um pouco mais a linha do tempo de nossas vidas. Por que tamanho medo da morte? Será que o homem começou a entrar em descrédito quanto à vida futura, quanto ao céu e inferno e a existência de Deus? De
forma alguma! O homem ocidental nunca foi tão místico – observação desnecessária ao homem oriental. Há um verdadeiro modismo religioso tomando conta do consciente coletivo da humanidade. Há programas religiosos em todos os canais de televisão, sejam missas, cultos, ou novelas de cunho espiritualista. A purificação dos males causados pelos demônios entra em nossas casas e apartamentos, via cabo ou antena parabólica. A bênção da prosperidade, da união familiar, da saúde e da cura, a amarração do olho grande ou gordo, da inveja, do mau-olhado, bem como toda sorte de negatividade são figurinhas fáceis na telinha de qualquer pessoa. Deus nunca trabalhou tanto, obrigado a curar e abençoar pelos pastores engravatados que arrebanham multidões e desdenham de outros pastores que curam menos ou mais.
Deus nunca foi tão louvado e adorado pelos padres e freiras cantores, pelas comunidades evangélicas e cantores gospel em geral. Deus nunca foi tão incomodado
pelas orações chorosas e cheias de força, nos punhos de quem esmurra o próprio peito ou mesmo abre as mãos para o céu aguardando a bênção cair.
O que está acontecendo então com a humanidade? Simples! Queremos o céu!
Sim, o céu! Com todas as suas regalias e prazeres à nossa disposição, aqui e agora em nossa existência, se possível com as 50 virgens dos muçulmanos. Queremos o prazer e o regalo bem aqui no meio do nosso caos de violência, de ambição, de egoísmo, de ganância, de ódio, em meio às drogas, prostituição e corrupção. Pra que esperar a morte se eu posso ter tudo aqui e agora? E não interessa quem vai nos proporcionar isso tudo, se a medicina, a robótica, a engenharia química ou os poderes celestiais, porque nós queremos, queremos agora e podemos e vamos pagar muito bem por isso.
De resto, há uma verdade filosófica que ilustra essa ansiosa vontade de viver e de banir a morte. É uma expressão do grande escritor e filósofo blitziano, Sir Evandro Mesquita, que no auge de sua sapiência e sublimação disse: “eu não queria falar, mas agora eu vou dizer, todo mundo quer ir por céu, mas ninguém quer morrer”.

sábado, 19 de novembro de 2016

CALMA! DEUS NÃO VAI JULGAR O BRASIL

Em 2010 eu tinha um blog chamado LÊ AÍ, Ó! Escrevi esse texto depois de uma declaração que o pastor titular da Primeira Igreja Batista de Curitiba fez acerca da necessidade dos cristãos votarem no PSDB, pois se votassem no PT, Deus julgaria o Brasil. Apesar do legado do Lulopetismo para o país, continuo pensando do mesmíssimo jeito, e a situação de crise que vivemos, decorre muito mais da nossa própria ignorância do que julgamento divino. Agradeço ao Pavablog por esse texto ainda estar lá. http://www.pavablog.com/2010/09/25/calma-deus-nao-vai-julgar-o-brasil/#comment-82456

No dia 31 de agosto passado, o canal da Primeira Igreja Batista de Curitiba, no YouTube, postou um vídeo, de pouco mais de 11 minutos, onde é mostrado um trecho de um dos cultos daquela igreja, onde o Pastor titular, Paschoal Piragine Junior, se pronuncia acerca das eleições 2010.

Nesse pronunciamento o pastor aconselha os seus ouvintes a não votarem nos candidatos do PT, Partido dos Trabalhadores, porque os mesmos haveriam firmado um acordo, comprometendo-se, caso eleitos, a votarem afirmativamente em projetos de lei que comportam em seu bojo questões polêmicas como o direito da mulher ao aborto, o casamento homossexual, a lei da mordaça, entre outros. Tais questões o Pr. Pascoal qualifica como “iniquidade”.

No mesmo vídeo o pastor dá a sua definição para o termo: “…iniqüidade é quando a gente ‘tá’ tão acostumado ao pecado, que o pecado, a gente não tem mais vergonha de cometê-lo e ele passa a ser algo tremendamente natural na nossa vida, e a Bíblia diz que quando a iniquidade chega, ou seja, o coração do homem ‘tá’ tão endurecido, que ele não se envergonha mais do pecado, ele não pode reconhecer nem que aqui alguma determinada ação é pecado, é tempo que Deus tem que julgar a sua terra, que julgar o seu povo, que julgar a nação”.


Após a postagem desse vídeo a comunidade evangélica partiu para a ação: centenas de milhares de envios, tanto do vídeo quanto do link, ocorreram via E mail, Twitter, Orkut, Messenger, Skype e outros. Foi como um grande formigueiro virtual transportando informações. O vídeo tinha, às 15 horas do dia 24 de Setembro de 2010, a menos de um mês de sua postagem, 2.265.840 exibições.

Consequentemente, centenas de milhares de pessoas receberam a mensagem do Pr. Pascoal, agradecidos e confortados por terem um verdadeiro representante do Senhor Deus zelando por suas pobres almas ingênuas.

A possibilidade de questionamento ou oposição ao que disse o pastor tornou-se um absurdo, afinal, trata-se de alguém que se posicionou como bastião da moralidade. Alguém que detém em primeira mão a informação de que há uma conspiração do mal acontecendo para afastar o nosso pobre país dos olhos bondosos de Deus, através da prática da “iniquidade” e assim atrair para si mesmo a ira divina, sob forma de seu julgamento mais cruel. Alguém que sabe que no mundo político e governamental há uma espécie de influência maligna que tenta tirar o Brasil da condição de país abençoado por Deus. 

Foi exatamente isso o que disse Pascoal aos 3 minutos e 20 segundos do vídeo, usando precisamente essas palavras: “e Deus não vai ter outra coisa a fazer, senão julgar a nossa terra, é isso o que a Biblia diz”.

Como Pascoal não forneceu qualquer referência de onde se encontram esses textos, devemos supor que são textos bem conhecidos, corriqueiros, comuns no âmbito evangélico. Um desses textos mais comuns trata de uma aliança que Deus fez com seu povo, Israel, onde ele promete abençoar de várias formas a nação, desde que ande segundo sua lei. Todavia, promete amaldiçoar o povo caso sua lei não seja obedecida.

Trata-se de do livro de Deuteronômio, capítulo 28, versículos 16 a 44, texto famoso pelas maldições impostas como juízo a um povo que abraçou a iniquidade. O texto diz, na tradução Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida: “Maldito serás tu na cidade e maldito serás no campo (…) maldito o fruto do teu ventre (…) maldito serás ao entrares e (…) ao saíres (…) o Senhor te fará cair diante dos teus inimigos; por um caminho, sairás contra eles, e, por sete caminhos, fugirás diante deles (…) o Senhor te ferirá com loucura, com cegueira e com perturbação do espírito (…) desposar-te-ás com uma mulher, porém outro homem dormirá com ela; edificarás casa, porém não morarás nela (…) o teu boi será morto aos teus olhos, porém dele não comerás; o teu jumento será roubado diante de ti e não voltará a ti; as tuas ovelhas serão dadas aos teus inimigos; e ninguém haverá que te salve (…) o estrangeiro que está no meio de ti se elevará mais e mais, e tu mais e mais descerás. Ele te emprestará a ti, porém tu não lhe emprestarás a ele; ele será por cabeça, e tu serás por cauda”.

Realmente terrível. Mas graças ao Pascoal, essas coisas não vão nos acontecer, desde que eu siga o seu conselho: não votar no PT, Partido dos Trabalhadores. Que bom! Eu já não gostava mesmo desse partido de políticos sonsos, ladrões, mensaleiros, transportadores de dinheiro em cuecas, malas, paletós e afins. Partido de gente que dança no congresso comemorando a impunidade alheia, de gente que desdenha do povo e enriquece de forma ilícita e assustadora.

Todavia, há alguns pontos obscuros no “Posicionamento do Pr. Paschoal Piragine Jr. sobre as eleições 2010”. Alguns pontos que gostaria de refletir acerca deles.

O primeiro deles trata da definição pascoalina de iniquidade. Pascoal diz que iniquidade é estar demasiadamente acostumado ao pecado, perdendo-se a vergonha de cometê-lo, tornando-o natural no curso da vida, impossibilitando a si mesmo de reconhecer a ação ou prática pecaminosa.

Realmente é difícil de acreditar que o pastor desconhece a verdadeira definição do termo, oriunda das páginas do livro sagrado, dos dicionários de língua portuguesa, bem como da tradicional Teologia Sistemática, já que é professor da faculdade Teológica Batista do Paraná, uma das primeiras a ter o reconhecimento do MEC, referência na teologia protestante. Apesar de que no site dessa instituição, dos 14 docentes com currículos apresentados, só o ícone correspondente ao currículo do pastor está inativo. Todavia deve-se crer que o padrão de formação do pastor é tão alto quanto o dos outros 13 docentes, todos mestres e doutores.

Longe de “estar demasiadamente acostumado ao pecado, perdendo-se a vergonha de cometê-lo”, o substantivo feminino de origem latina (iniquitate), denota a falta de equidade, de justiça, corrupção de costumes, ação injusta ou crime.

Quando esse vocábulo aparece nas páginas da Bíblia, no Antigo Testamento, ele é usado para traduzir o substantivo hebraico ‘avon (Nwe), que possui o sentido de perversidade, depravação, iniquidade, culpa ou punição por iniquidade. Esse substantivo tem origem no verbo ‘avah (hwe) estar curvado, ser torcido, ser pervertido, agir erradamente, perverter.

Quando o vocábulo aparece no Novo Testamento, pode originar dos termos adikia (adikia) ou anomia(anomia) e denotam uma profunda violação da lei e da justiça ou desprezo e violação da lei. O Dicionário da Bíblia de Almeida, da Sociedade Bíblica do Brasil traz a seguinte definição: iniquidade é o pecado que consiste em não reconhecer igualmente o direito de cada um, em não ser correto, em ser perverso.

O fato é que Pascoal distorceu o sentido do texto e usou para o contexto que bem quis e entendeu, a fim de se chegar a um objetivo claro: convencer os seus ouvintes e fieis espectadores de que há pecado nas votações do PT e Deus não está gostando nada do que está acontecendo. Um julgamento divino iminente pode se abater sobre o Brasil.

Para piorar o que já não está bom, Pascoal faz uma exegese errada do texto que, na verdade, só ele mesmo sabe qual é, dentro de uma das áreas mais delicadas da Teologia Sistemática – a Escatologia, doutrina das coisas futuras.

Segundo os ensinamentos da Teologia Sistemática, na área da Escatologia, figurinha fácil em qualquer sala de aula de qualquer instituição de ensino religioso, inclusive as instituições batistas, filiadas à mesma convenção da Primeira Igreja Batista de Curitiba, pastoreada por Pascoal, não vai haver juízo nenhum. Isso mesmo, podem se acalmar porque Deus não vai julgar o Brasil.

Deus não vai julgar o Brasil por dois grandes motivos clássicos extraídos do ensino da Teologia: primeiro, porque a geração pós Cristo, ou seja, todas as pessoas que nasceram depois de Jesus, fundador do Cristianismo, não estão debaixo das regras da aliança que Deus teria feito com a nação de Israel por volta do ano 1.500 a.C.

A Bíblia fala de algumas alianças que Deus teria feito com os homens, tipos de contratos, onde o divino interagia com o humano. Alguns exemplos são a aliança Adâmica, onde Deus entra com a bênção sobre toda a criação e o homem entra com a multiplicação de si mesmo, dos animais e plantas; a aliança Noética, onde depois do dilúvio Deus promete jamais destruir novamente a terra por meio de dilúvio; a aliança Mosaica ou do Sinai, essa que promete abençoar e amaldiçoar conforme o proceder da nação de Israel, bem como sua relação com a iniquidade; a aliança davídica onde Deus promete ao rei Davi que não faltaria sucessor ao seu trono.

Mas quando Jesus se manifesta como ícone de uma nova religião, quando assume ser o vigário de Deus e filho de Deus, quando decide estabelecer um aglomerado de fiéis chamado igreja, firma uma nova aliança com seus seguidores. Uma aliança definitiva, insuperável e desprovida de troca, ou seja, o homem não precisaria fazer nada para merecê-la porque ela seria dada de graça e por amor, vinda da parte de Deus para a humanidade.

Essa aliança está mostrada na Bíblia, no Novo Testamento, entre vários textos, em Mateus capítulo 26, versículos 28 e 29: “Porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai”.

Ora, a coisa toda é bem simples. Jesus morreria na cruz e o seu sangue representaria uma nova aliança que remiria os que nele cressem dos seus pecados. Realizada essa purificação de pecados ele se reuniria novamente com seus seguidores no reino do Pai.

São três passos simples: Morte de Cristo, crença em Cristo para perdão de pecado e encontro com Cristo no reino do Pai. Isso é a nova aliança, onde não há via de mão dupla, ou seja, faça o certo que Deus abençoa, faça o errado e ele te ferra. Seja fiel e seu país enriquece, seja iníquo e o sua nação se ferra. A única via que há é de mão simples. Cristo fez, faz e fará: morreu, perdoa e voltará.

Isso é cristianismo puro, bíblico e fundamental, seu Pascoal. Se enriquecermos ou empobrecermos, se sofrermos epidemias, violências, crimes, tráfico, descaso com a saúde, miséria, pobreza, fome, peste e guerra, não será por causa do juízo divino, mas por causa das nossas escolhas, escolhais tais que passam inclusive pelas urnas.

Depois da morte e ressurreição de Cristo e do advento do Pentecoste, o derramamento do Espírito de Deus sobre as pessoas, só resta uma coisa para acontecer segundo a escatologia: o encontro com Cristo, encontro esse que a própria Teologia não definiu se é antes de um período de mil anos ou depois, ou se antes de um período de sete anos de tribulações e problemas na humanidade, no meio desse período ou depois, e se esse encontro com Cristo se dá mediante sua volta ou a ida dos seus fiéis até ele numa espécie de levitação coletiva que a igreja evangélica chama de arrebatamento.

Todavia não há espaço para julgamentos, pragas egípcias, ou coisas do tipo, porque segundo a mesma Bíblia, Deus é imutável no seu ser, nas suas perfeições, nos seus propósitos e nas suas promessas. Não irá de modo algum alterar seus planos por causa do Pascoal. A veracidade divina implica que ele é o Deus verdadeiro, e que todo o seu conhecimento e todas as suas palavras são ao mesmo tempo verdadeiros e o parâmetro definitivo da verdade. Não irá desfazer o que fez em Cristo para refazer no Pascoal.

Além da distorção de um termo e de uma exegese errada, pesa contra o pastor Pascoal o fato de que talvez não devesse falar de política a partir do púlpito. Não pelo fato de que não se deve misturar política ou religião ou de que a igreja nada tem a ver com o estado, ou pelo fato de que Pascoal se ostenta como um homem de Deus e a política é corrupta e corruptível ou qualquer outro preconceito justificável, mas pelo simples fato de que num dos cultos de domingo do ano de 2006, Pascoal chamou ao púlpito para desfazer publicamente possíveis calúnias e boatos acerca de seu nome, bem como para orar por ele e pedir o juízo de Deus sobre todos quantos o injustiçaram e difamaram, o seu mais notável diácono, o então deputado federal pelo PMDB do Paraná, o Dr. André Zacharow, 14º nome na letra A do site fichasuja.com.br, envolvido no chamado escândalo dos Sanguessugas, também conhecido como máfia das ambulâncias, escândalo de corrupção que estourou em 2006 devido à descoberta de uma quadrilha que tinha como objetivo desviar dinheiro para a compra de ambulâncias.

O caso daria origem, no mesmo ano, ao Escândalo do Dossiê, em que integrantes do (PT) Partido dos Trabalhadores foram presos em flagrante pela Polícia Federal comprando, com 2 milhões em dinheiro vivo, um dossiê que revelaria a suposta participação de políticos do PSDB no esquema.

Portanto, compatriotas, levantai vossas cabeças ao alto e respirai. Não haverá juízo por causa das Eleições 2010. Votem pelas propostas dos candidatos a deputado federal, estadual, senadores, governadores e presidentes, e não por aquilo que um pastor de certa referência, vários anos de ministério, mas com uma palavra distorcida, uma exegese errada e uma ética duvidável acha ou deixa de achar.

Há algo que a Bíblia diz sobre o assunto, e esse algo tem endereço certo, Gálatas capítulo 6 versículo 7. Trata de uma regra de vida estabelecida por Deus e que o próprio Deus não vai se deixar envergonhar quebrando essa regrinha: “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará”.

Cuidado com o que será semeado em 3 de Outubro, porque a colheita começa em Janeiro de 2011.

sábado, 15 de outubro de 2016

DIA DO PROFESSOR

Eu só tive bons professores. Aos maus, eu não reputo tão honrado título.
Os bons me acolheram com paciência e sabedoria, dividiram comigo o resultado de seus esforços e alguns se tornaram amigos.
A lista é grande: tem a minha mãe, que me ensinou a ler, meu pai que me ensinou a dirigir, meu irmão que ainda hoje me ensina a ser irmão, meus tios, que me ensinaram sobre minha família, mas fora do eixo parental, tem aqueles que foram remunerados para me ensinar e aqui, só os bons merecem referência, porque mesmo pagos, me deram mais do que as suas remunerações pediam.
Mas como escolher o melhor? Simples! Aquele por quem você tem mais carinho, gratidão e saudade; aquele que salta das portas e janelas de sua memória todas as vezes que você pensa em professor e aquele que te ensinou coisas que ainda hoje você sabe e usa o que aprendeu. Particularmente, considero esses quesitos na hora de escolher meu melhor professor. No meu caso, uma professora. Uma professora de teoria musical. Mas ela não é a melhor por acaso.
Quando entrei pela primeira vez em sua sala, havia todo um contexto para que ela fosse a melhor: eu estava ali porque queria aprender música, e havia ganho essa matrícula do meu pai como um prêmio por minhas notas na escola. Estava sedento por tocar e cantar e para isso eu tinha que aprender teoria musical. Toda a minha emoção estava entrando naquela sala naquele dia de março, naquele  ano, 1977. Estava na adolescência e os planos para o futuro eram um tanto quanto confusos e não haviam certezas em mim, salvo a certeza do fato de que eu queria aprender música. Então, quando se é jovem e só se tem uma certeza na vida, a janela do aprendizado se abre para essa certeza.
Era uma sala com menos de dez alunos, carteiras velhas, uma lousa verde com linhas brancas pintadas, um ventilador barulhento e um piano antigo. O ambiente cheirava a mofo e os janelões, quase sempre fechados, davam a impressão de antiguidade e velharia por todo o ambiente. A luz era escura e o teto altíssimo, forrado com uma madeira em decomposição e de alinhamento retorcido, dado o calor e a umidade vinda das infiltrações. A sala era vizinha à cantina e sempre tinha um cheiro de café com gordura nas nossas narinas durante a tarde.  Achei  tudo muito estranho, porque esperava luzes e cores em tudo, como todo bom adolescente espera. Mas vejam que interessante: as luzes e as cores não estavam sob meus olhos, mas nos meus ouvidos.
No horário da aula a professora chegou, jovem, com um brilho nos olhos de quem sabe o que vai dizer, pequenina, magra, com óculos de grau de aro quadrado, lentes grossas escondendo um azul penetrante, que se não fossem os óculos invadiam a alma da gente, cabelos curtos e lisos, uma saia comprida, camiseta e algumas bijuterias meio hippies. Ela apresentou-se, sentou-se ao piano e começou a falar sobre harmonia, melodia e ritmo, representando os sons do mundo em seus dedos precisos sobre as brancas e as pretas debaixo daquela tampa de madeira. Ela disse que podíamos representar os pensamentos nos sons e, como exemplo, nos fez pensar numa catedral enquanto que no piano, tocou os sons da catedral. Não, eu não chorei naquele dia. Estava fascinado demais para isso, mas hoje, é difícil me lembrar daqueles sons sem chorar de emoção. Mal sabia ela que ao tocar os sinos daquela catedral, ela estava abrindo os portões de um mundo mágico e novo para mim, um lugar tão bom e tão especial, que ao longo da vida eu correria para lá por muitas vezes. Umas para celebrar, outras para chorar e lamentar e outras para construir. Nunca um ensinamento havia se impregnado tão intensamente em mim como as coisas que aprendi naquele ano, emocionantemente encerrado com uma peça em conjunto, João e Maria de Chico Buarque e Sivuca, comigo e um colega  no violão e os demais na percussão, com chocalhos e pauzinhos de madeira, marcando o compasso ternário daquela valsa . Aquele ano terminou para mim me dando a certeza de que “agora eu era o herói”.
O tempo passou, e como disse o Zeca, “a gira girou” e muitas vezes, aquelas aulas de teoria foram repetidas para jovens e adolescentes no Nordeste, no Norte e no Sul, ora por necessidade, ora por solidariedade. E hoje, violonista de boteco e pianista medíocre, me lembro da pianista do filme do Benjamim Button, quando disse a ele que “não importa o quanto se sabe tocar, mas importa o que se sente quando se toca”. E hoje, quando toco e canto, sou grato por toda a vida à minha professora de teoria musical, Elvira Drumond.
Peço a Deus que ela viva muito e muito bem, em plena atividade docente, salvando crianças da dor, das drogas e da violência, mostrando a elas os portais do mundo mágico da música, formando pianistas, violinistas, flautistas, maestros  e, num dia muitíssimo distante, quando ela for para o céu, que o Rei Davi esteja à porta esperando por ela e diga, entra, professora, porque o louvor aqui está precisando de afinação, há um problema com as harpas e parece que Asaf resolveu semitonar com sua flauta. Por favor, dê um jeito nisso porque eu já estou sem paciência! E assim, eternamente ela seja a Tia Elvira, professora, mestra, ensinadora, em sua plena essência universal.

Feliz dia do professor, tia! Este antigo aluno aqui, agradece a Deus por sua vida.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

RENÉE, SEJA BEM-VINDO


O aeroporto estava lotado. Era janeiro e as pessoas buscavam descanso sob o intenso sol de verão nas praias da cidade.
No meio da multidão uma faixa: Renée, seja bem-vindo. A faixa estava meio torta, como que segurada por duas pessoas de tamanhos diferentes, o que a destacava mais ainda no tumulto do saguão de desembarque.
A aeronave que chegara de São Paulo estava no pátio e as pessoas se aglomeravam no lado de dentro do saguão procurando suas bagagens na esteira e isso aumentava consideravelmente a espera e a intensidade da ansiedade de quem esperava do lado de fora, principalmente os que seguravam a faixa, confeccionada especialmente para Renée.
A porta automática abria e fechava sob as ordens de um sensor ativado pelo vai e vem dos recém-chegados. Quanta espera! Quanta ansiedade! A aeronave no pátio e nada de Renée.
Sob a faixa um adolescente de uns doze anos, talvez, bermuda em tom pastel e camiseta com algum herói da tela do cinema. Uma jovenzinha de prováveis dez anos, camiseta cor-de-rosa, é claro, tênis branco combinando com a bermuda, cabelos compridos e desalinhados, testa suada, resultado das estripulias no espaçoso saguão do aeroporto. Uma senhora de idade difícil de ser arriscada, alguma coisa entre trinta e cinco e cinqüenta e cinco, talvez jovem sofrida demais, talvez de uma boa idade com ares joviais. Estava um pouco acima do peso, cabelos lisos e compridos, tingidos de um louro reluzente, desproporcionais ao seu corpo e altura, blusa de lycra fina bege, bermuda branca e tamancos. Tamancos brancos. Era ela, a senhora, que organizava a recepção de Renée. Afastava a faixa para lá ou para cá, tomando o cuidado de posicioná-la da melhor maneira, para que quando Renée chegasse, não tivesse dúvidas de que a faixa era para ele, viajante de regresso merecedor da homenagem, esperado, amado e porque não dizer: desejado.
O clima de festa misturava-se com a tensão do encontro e o cansaço da espera quando, num momento mágico, a porta se abriu. Não se abriu levianamente, como se abre uma porta qualquer, mas se abriu solenemente, lentamente, automaticamente, acionada pelo corpo de Renée, que dela se aproximava, forçando sua abertura sem toques, sem fios, magneticamente.
Renée cruzou a passagem revelada pela porta automática empurrando um carrinho com suas malas e mochilas. Era um adolescente de uns quinze ou dezesseis anos, cabelos curtos e negros, topete discreto, pele cuidadosamente escanhoada com algum aparelho de múltiplas lâminas, camiseta bege, calça branca e um tênis não muito novo. Era um jovem aparentemente discreto, mas notadamente tímido, que corou, enrubesceu, avermelhou como um índio americano quando viu a mal feita coreografia da faixa e companhia.  “Renée, seja bem-vindo”, gritou o pequeno coral de três vozes, desarmonicamente, desafinadamente, desconcertantemente. O jovem viajante abaixou a vista, tentou enfiar a cabeça no buraco, mas buraco não havia no brilhante e encerado piso do aeroporto, tentou voar como quem toma aquele famoso energético no comercial da televisão, mas aquilo era só um comercial, tentou fugir, mas não tinha para onde, então, lentamente empurrou seu carrinho na direção daquele grupo mambembe e como um legítimo mamulengo se deixou manusear pelos seus anfitriões, para um lado e para o outro, para cima e para baixo. Abraços para lá, beijos para cá, o jovem eufórico pulando em sua frente enquanto a jovenzinha pendurava-se em seu braço teso de empurrar o carrinho com as malas. Renée continuava sua caminhada impávido rumo à porta de saída do aeroporto, trêmulo de vergonha e timidez. Mas não a nada ruim que não possa piorar. Aquilo que é mal agora pode ficar péssimo em questão de segundos. A festa acabara. Os folguedos cessaram. Agora o jovem adolescente carregava a faixa sozinho tentando enrolá-la no meio do aeroporto. A jovenzinha tentava ajudar abaixando-se para tentar pegar a cordinha da faixa. É notório que nunca tinham enrolado sequer um canudo de papel, quanto mais uma faixa de boas vindas. Renée continuava sua jornada. A senhora fechou o semblante e num tom ríspido bradou: — Enrola essa faixa menino! Não ta vendo que a corda está arrastando no chão? Presta atenção, diabo! “Tá” dormindo? Enrola logo!
      Pronto. A família estava reunida de novo. A rotina fora retomada. A secura da mulher talvez descasada, talvez mal-amada, autoritária, dominadora, possessiva e triste novamente permeava os ares da família que agora reassumia seu verdadeiro semblante. Um semblante triste, vazio, opaco. Renée cruzou primeiro a porta de saída do aeroporto. A mulher saiu em seguida. A jovenzinha agora muda e triste. O adolescente desolado, mudo, triste, com uma faixa enrolada sob a axila direita. Fim de férias, fim de passeio, fim da alegria.