quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A MORTE DA FÉ

A MORTE E A RESSURREIÇÃO DA FÉ NO CONTEXTO BRASILEIRO.

“Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se
esperam, e a prova das coisas que não se vêem”.
Hebreus 11.1.

O fiel leitor da bíblia em língua portuguesa vai encontrar-se com a palavra “fé” por cerca de 250 vezes, número modesto se comparado à quantidade de vezes que esse par
de letras é citado dentro do contexto evangélico, seja na mídia ou nos cultos públicos.
Muito mais citada que o amor ou o serviço, a fé deveria ser daquelas palavrinhas acerca da qual nós devêssemos ter maior intimidade e domínio de seu real significado, mas tal não acontece. A grande maioria dos que dela se utilizam não entende o peso, a força, a significância de uma palavra tão pequena. Tampouco não é nossa intenção aqui perscrutar, dissecar ou espremer sua essência a fim de que ela nos mostre a verdade, até mesmo porque nesse assunto não há como ser exaustivo, pois o pequenino vocábulo tem relação com os verbetes “crer”, “acreditar”, “esperar”, e denota termos e expressões como “boa consciência”, “certeza de”, “convicção acerca de”, “firmeza em”, “fidelidade para com”, “estabilidade sobre”, “lealdade a” bem como “caráter de”. Todavia, uma rápida olhada na etimologia do termo em grego, latim ou português, já nos permite entender pela pena do lexicógrafo que a fé consiste no primeiro exercício consciente do regenerado. É um tipo de persuasão da mente de que determinado testemunho ou depoimento é
verdadeiro. Essa persuasão, fenomenalmente, não se dá de forma plenamente voluntária, mas consiste numa virtude proveniente do amor de Deus.
Contudo, a fé e a crença (esta última, não menos importante dada sua estreita relação com a primeira) não encontram hoje qualquer respaldo ou sustentação dentro desse conceito.
Na tentativa de compreender quão longe estamos do real sentido da palavra fé, seria suficiente observarmos, por exemplo, o que aconteceria se perguntássemos a alguém se um ônibus passa numa determinada rua (logicamente, se dirigíssemos essa pergunta a alguém que não tem vínculos com a empresa que fornece o serviço de transporte), uma das repostas possíveis seria: “creio que ele passa lá, sim”. Quando compartilhamos com alguém a intenção de realizar alguma visita a um amigo ou mesmo
um ente querido, um dos comentários possíveis é: “liga sim, creio que ele está em casa agora”. Aparentemente, na modernidade e na pós-modernidade, crer se constituiu num sinônimo de incerteza, o que acaba sendo uma espécie de paradoxo antagônico da fé em seu sentido original.
Essa desinformação, aliada ao fenômeno de substituição do centro do culto cristão, faz com que um novo sentido para a palavra fé seja construído. Essa nova construção demove antigos fundamentos de caráter inteiramente espiritual, etéreo, subjetivo e transcendente para um novo fundamento mais palpável, objetivo, pragmático, temporal, e por que não dizer, concreto.
Naturalmente esse fenômeno consegue produzir na Igreja contemporânea uma mudança na ótica da pregação da fé evangélica, transformando-a em algo que se pode associar tempo e espaço, bem como aos sentidos, distanciando o termo de preceitos filosóficos sinônimos de “crer”, “acreditar” e “esperar”.
A Igreja contemporânea tem transformado a fé em algo que se pode ver, ouvir, sentir, tocar e, literalmente, cheirar, dando ao termo um enfoque completamente antropocêntrico. Nesse contexto, a fé tem sido materializada a fim de atenderem aos propósitos daqueles que a manipulam ou manipulam os que da fé procuram se servir para atender necessidades primárias e urgentes, muitas vezes causadas por lacunas deixadas pelo governo, pelo sistema, pelos infortúnios e desencontros da vida pós-moderna.

A materialização da fé 

Grande segmento da igreja pós-moderna tem buscado promover aquilo que poderíamos denominar de “materialização da fé”. Tal fenômeno se origina nas sensações palpáveis inerentes ao homem, passa pela resolução objetiva de seus problemas, e tem seu ápice na produção em série de variados tipos de amuletos cristãos, usados para toda a sorte de necessidades.
Nos cultos públicos de adoração observam-se em nome da fé, gritos, pulos, sopros, coreografias, socos no ar e manifestações emocionais das mais estranhas e adversas a fim de produzir uma espécie de ambiente propício à ação divina, ou seja, para que a divindade perceba e entenda que o que está sendo expresso fisicamente é uma manifestação genuína de fé. É provável que se entenda que a ação soberana de Deus precise de algo como um “heliporto” a fim de aterrissar a “nave do poder” em Sua própria igreja, ou pior: como se Deus fosse uma entidade classificável nos moldes das entidades das religiões afro-brasileiras, que necessitam de um estado anímico específico de seus incorporadores a fim de baixarem em seus cultos.
Esse fenomenal processo de materialização também faz uso da simbologia do Antigo e do Novo Testamento, promovendo um dos maiores negócios da história do Brasil, que consiste na venda de “ilusões” através de símbolos concretos. Para isso conta-se com o “marketing” utilizado na propaganda das virtudes da própria instituição religiosa que encabeça o “grande negócio”, a fim de solidificar a ação do poder divino dando ao fiel a sensação de palpável em relação a determinada igreja. Isso faz com que o fiel contemporâneo busque um encontro com Deus em endereços específicos que pode facilmente conseguir no “horário nobre” de seu canal favorito de televisão. Nesses endereços, em cima de bancas armadas nos templos pode-se adquirir a preços populares o óleo de oliva do Jardim do Getsêmane, a rosa de Sarom, bem como frascos com o perfume da referida rosa, caixinhas com a terra do monte Sinai ou o sal do Mar Morto, frascos contendo a água do rio Jordão e ainda uma série inominável de souvenires da Terra Santa, que têm o estranho poder de materializar aquilo que é imaterial: a fé. Longe ou perto de qualquer associação com a famosa “venda de relíquias” ocorrida na Era das Trevas, o “consumidor da fé” pode facilmente adquirir a espada de vidro que deve ser quebrada para que o óleo contido nela seja derramado para a unção de bens móveis e imóveis, bem como partes do corpo do usuário, objetivando a palavra que significa o resultado, o mais imediato possível, da fé: a Vitória.
Mas não é só a Bíblia Sagrada em seus dois testamentos que é explorada e vilipendiada em sua simbologia, mas o grande negócio da fé consegue realizar operações de importação e consumo dos mais diversos símbolos usados nas religiões espiritualistas e de mistério, como o sal grosso, a vela perfumada, o incenso, ramos de arruda e outras plantas infrutíferas, bem como as roupas brancas, o sal grosso, as ervas e seus banhos, os mantras incansavelmente repetidos para obtenção de bênçãos, além de seus termos bem específicos que uma ou duas décadas atrás jamais poderiam ser associados ao cristianismo como: corrente, novena, descarrego e oferenda.
O triste fato é que, longe de parodiarmos Friedrich Nietzsche, podemos afirmar sem sombra de dúvidas: A fé está morta! Foi assassinada debaixo de nossos narizes e olhos perplexos. A genuína fé morreu ou, no mínimo, foi transformada em algo que nada tem a ver com sua essência original e, se aqueles a quem podemos chamar
remanescentes da pregação do genuíno Evangelho, que ainda entendem a fé em seu sentido mais primitivo creem no que pregam e ensinam, necessitem tomar a difícil decisão que oscila entre o seu sepultamento ou a promoção de sua ressurreição. Para isso, é necessário observar alguns bons e velhos pressupostos.

Objeto, ideia e natureza: importantes aspectos da fé bíblica.

O primeiro pressuposto importante e digno de toda a observação é que objeto da fé é a promessa de Deus ao homem que está contida em Sua palavra, ou seja, a fé tem
como objeto um conjunto de poderosas palavras. Elas foram geradas, produzidas, para serem ouvidas, assentidas, gravadas e cridas. Simples! Nada de objetos, amuletos, relíquias ou coisas do gênero. 
Segundo, é que a ideia primária da fé é a confiança. Isso faz o homem confiar em algo prometido que certamente acontecerá. Promessas como “Estou convosco todos os dias”, “Jamais abandonarei”, “Eu lhes dou a vida eterna”, “Ninguém as arrebatará (as ovelhas) da minha mão”, ou “o maligno não lhe toca”, devem ser entendidas à luz da eternidade, da transcendência, da espiritualidade.
Há também o fato de que a natureza da fé é a certeza, sentimento que suplanta qualquer visualização ou sensação epitelial, e que se reporta a coisas que se esperam e a fatos que não se vêem. Esse pequeníssimo conjunto de pressupostos clama aos ouvidos
dos pregadores da Palavra de Deus como vozes de um morto emérito, sepultado, pranteado, mas que ainda geme através da força de sua passagem existencial, cobrando
deles uma responsabilidade ativa maior que suas próprias forças, responsabilidade esta só entendida e viabilizada à luz da própria fé.

A grande responsabilidade do pregador da Palavra de Deus

O grande e atual desafio do pregador da Palavra de Deus é mostrar ao homem contemporâneo brasileiro a fé em Jesus Cristo assim como se mostra as formas e as cores das coisas a uma criança recém-nascida que abre os olhos, ou mesmo a um cego que ficou vários anos sem ver a luz.
O pregador evangélico, e por que não dizer, profeta contemporâneo, deve ensinar às criaturas de Deus que a fé pode produzir muito mais que um ansiar por melhorias de vida, o que um estado razoavelmente governado pode proporcionar sem esforços mirabolantes.
O profeta pós-moderno precisa ensinar a todos que o homem deve voltar-se às coisas muito mais importantes do que o simples saciar de necessidades produzidas pelas
lacunas deixadas pelo governo.
Necessita o profeta de Deus alardear que as injustiças sociais não são conspirações demoníacas forjadas no inferno para diversão das hostes demoníacas, mas resultado de uma construção social irresponsável e descomprometida com o ser.
O exercício da fé não deve produzir o sofrimento e o sacrifício de uma população já sofrida e sacrificada pelo descaso do poder público, mas deve produzir uma genuína, e por que não dizer saudável, união com Jesus Cristo, participação na plenitude de Sua vida, paz, em todas as esferas possíveis ao homem pleno, consigo mesmo, com Deus e com o próximo, certeza de salvação e santificação.
Que Deus abençoe seus verdadeiros profetas! Que a fé que professam seja real em seus corações! Que a ação daquele que convence o homem do pecado seja crida por
eles com mais intensidade ainda! Que a essência do perfume da vida e da morte seja espalhada, mas que a vida tenha narinas mais sensíveis, ou seja, ouvidos mais atentos e joelhos mais flexíveis!


Agosto de 2004.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ATENÁGORAS, Bispo de Atenas. Padres Apostólicos, Volume I, Coleção Patrística. Ed. Paulus. Tradução: Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin. 1986.
BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. Versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, de acordo com os melhores textos hebraico e grego. Rio de Janeiro. Imprensa Bíblica Brasileira. 1993.
JAGER, H. J., Palabras Clave del Nuevo Testamento Vol 1. 1ª Ed. FELiRe, Barcelona. 1999.
HODGE, Charles, Teologia Sistemática. 1ª Ed. Hagnos, São Paulo, 2001.
TUCKER, Ruth A., Até aos Confins da Terra: Uma História Biográfica das Missões Cristãs, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1996.
WILKINSON, Bruce. A Oração de Jabez. Trad. Emirson Justino. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2001

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