domingo, 30 de setembro de 2012

A LINHA VERMELHA DO COMISSÁRIO GORDON OU POR QUE A MULHER-MARAVILHA NÃO É O HOMEM-MORCEGO

PRÊMIO ANTONIO SALES NA XIII EXPO7

Eu tinha uma dúvida. Uma duvidazinha simples, reles, fácil de ser respondida, porém era daquelas dúvidas que ficam feito mosquito voando em volta do nariz da gente, nos fazendo irrequietos, agitados, desconcentrados e (Por que não dizer?) infelizes.
O dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal da minha universidade, ponto, be-erre, já havia me dito o que fazer, mas eu, genuíno espécime de transição do tempo em que ainda se falava basic COBOL para o tempo em que só se fala emWindows Vista, não confiei plenamente no que me dizia o portal. E se não for assim? E se houver outra possibilidade? E se eu acabar me prejudicando? É claro que o portal nunca erra! Um portal é mais que um oráculo, pois ali está o seu presente, passado e futuro! Todavia uma duvidazinha sussurrando palavras de duvidazinhas em nossa orelha, feito um mosquito voando em volta do nariz da gente, possui muito poder. O poder de nos fazer criar um caos, onde só havia um ventinho soprando; um tsunami, onde só havia uma goteira pingando. Ainda mais quando a certeza vem de um tal de dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal sei lá de quê, e adentra ouvidos e mente de alguém que é do tempo em que ainda se falava basic COBOL. Quando isso acontece, não há uma relação de confiança. Uma pessoa do tempo em que ainda se falava basic COBOL jamais confia cegamente num dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal. Para esses momentos, nada melhor que o bom e velho telefone. Telefone, aparelho eletroacústico que permite a transformação, no ponto transmissor, de energia acústica em energia elétrica e, no ponto receptor, a transformação da energia elétrica em acústica, permitindo desta forma a troca de informações, falada e ouvida, entre dois ou mais indivíduos. Esse não mente! Esse tem o poder de dar a informação precisa naqueles momentos de dúvida onde um dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal da só meia informação ou, no mínimo, deixa margens para dúvidas.
Liguei para o ramal 7609, pois dona Palmirinha iria me ajudar. A sábia senhora detém, na sua simplicidade, uma grande sabedoria. Garfield atendeu:
— Sala da sabedoria, bom dia!
— Palmirinha, por favor?
— Palmirinha está na xerox ou na biblioteca.
— Talvez você possa me ajudar....
Fui bruscamente interrompido como se estivesse falando palavras obscenas.
— Não, não. Só com ela mesmo...
— Mas eu ainda não falei, amigo.
— Mas é só ela quem resolve mesmo.
—Ela demora?
—Não sei. Liga pro 7440.
Mais oito notas musicais soaram no teclado do meu telefone. Ocupado. Tentei de novo a Palmirinha, no 7609, Garfield de novo na linha:
— Palmirinha chegou?
—Chegou. Palmirinhaaaaaaaaaa... telefone.
— Sala da sabedoria, bom dia!
— Eu tenho uma dúvida. Será que posso fazer assim e assim?
Palmirinha, no centro das luzes de sua sabedoria, me respondeu.
— Olha, eu acho que pode. Mas é bom você ter certeza. Nunca se sabe. Liga pra sala da justiça, no 7458, e fala com a coordenadora Diana Prince, a Wonderful Woman. Ela sabe.
Que palavras confortadoras! Que sabedoria! Tudo o que eu precisava ouvir nessa hora eram as expressões: “eu acho”, “é bom você ter certeza” e “nunca se sabe”.
Mais oito notas musicais soaram desarmônicas no teclado do meu telefone. O 7458 estava ocupado. Aflito, recorri novamente ao dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal da minha universidade, ponto, be-erre, porque ali, havia um labirinto que levava ao portal dos telefones. Uma passagem secreta conhecida por poucos que continha o segredo das comunicações telefônicas. Alguma digitação e alguns cliques no mouse e ali estava eu: diante da magia das comunicações, a página que continha os telefones dos respectivos setores de ajuda aos duvidosos. A página continha verdadeiras preciosidades, como ramais em sequência: 7452, 7453, 7454, ou 7353, 7354, 7355. Alguns mais complexos como 7886, 7887, 7888, 7889, e outros mais simples como 7457 e 7458. Liguei para o 7354: ocupado. Depois para o 7428: chamou e ninguém atendeu. Retornei ao 7354: chamou e ninguém atendeu. Tentei de novo o 7428: ocupado. Desesperado, liguei todos os números da lista que estava diante de mim, até que um atendeu:
— Tenho uma dúvida.
— Desculpa, dúvidas são respondidas no 7458, com Diana Prince.
— Mas está ocupado.
— Eu sei, está tudo congestionado por lá.
— E o que eu faço?
— Fica tentando.
— Mas eu estou tentando desde a manhã.
— Olha, amigo, eu não costumo fazer isso, mas como você parece ser gente boa, eu vou abrir uma exceção. Vou te dar o número do rapaz que trabalha vizinho à Diana Prince. Você liga para ele e manda chamar ela, mas não diz que fui eu quem deu o número. É no 7457.
— Muito obrigado, não sei como agradecer.
— Ora, não foi nada! Eu estou aqui para isso mesmo! Disponha!
Eu havia feito a minha primeira tentativa de resolução com Palmirinha, às 9 horas e 15 minutos, daquela linda manhã de sol, mas o sol já estava encerrando seu expediente, pois já eram 16 horas e 45 minutos. Resolvi encerrar também o meu expediente, com uma última ligação, dessa vez, para o lugar onde eu havia começado: o gabinete da Palmirinha, no 7609. Oito sons no teclado do meu telefone, e o Garfield já falava comigo:
— Sala da sabedoria, bom dia!
— Garfield, chama a Palmirinha, por favor.
— Palmirinha trabalhou de manhã. Quando ela trabalha de manhã ela folga de tarde.
— Você pode me ajudar? Tenho uma dúvida.
— Não. Só com ela mesmo.
— O que eu faço, então?
— Liga amanhã.
— Amanhã?
— Mas não liga de manhã, não. Liga de tarde. Quando ela trabalha num dia de manhã, no outro ela só vem de tarde. Liga depois das 16 horas que ela já voltou da xerox.
Indignado e desesperado, fiz uma última tentativa. Aquela que você sabe que não vai dar certo, mas não se incomoda porque passou o dia em tentativas vãs. Resolvi arriscar o 7458. Isso mesmo, Diana Prince. Eu já não tinha mais nada a perder, e afinal de contas, uma discagem a mais ou a menos, não ia fazer diferença. Mais oito sons desarmônicos. Dei sorte. Uma sorte imensa, dessas que a gente tem vontade de largar tudo e arriscar uma Mega. Diana Prince, ao vivo, do outro lado da linha.
— Diana falando, em que posso ser útil?
— Tenho uma dúvida.
— Eu já sei, e se resolve assim e assim.
Que impacto! Que precisão! Que pragmatismo! Que impavidez! Foi como ser ricocheteado como uma bala pelas pulseiras douradas, amarrado pelo laço mágico, ser jogado no avião invisível, ser transportado para Temiscira, a ilha do Paraíso, e ainda ter visto as amazonas filhas da grande Hera. Uma sensação de frescor me invadiu a alma, um sorriso se abriu em meu rosto e um brilho estranho tomou conta dos meus olhos. Voz trêmula e rouca eu disse ao telefone.
—Muito obrigado.
E chorei. Chorei porque Diana Prince não é Bruce Wayne. Isso mesmo. Diana Prince é uma burocrata cercada de incompetentes que não sabem dizer outra coisa a não ser: “isso não é comigo, é com a Diana Prince”. É como se tivesse um milhão de assessores, que na sua frente sorriem e dizem: “estamos com você para o que der e o que vier”, mas pelas suas costas dizem: “isso não é comigo, é com a Diana Prince”. Pobre Diana. Se ela fosse o Bruce Wayne não precisaria sair de sua casinha lá no conjunto, no seu Pálio cinza, e todos os dias rumar para o ninho da burocracia, e tentar resolver o problema dos pobres mortais, como eu, que ainda sou do tempo em que ainda se falava basic COBOL. Ela se assentaria no sofá do salão principal da mansão, leria tranquilamente o seu jornal, fumaria um bom charuto enquanto saborearia seu chá quentinho trazido pelo Alfred, tranquila porque saberia que o batmovel estará sempre na garagem da batcaverna, e só se moveria para resolver algum problema quando ouvisse soar a linha vermelha do comissário Gordon, que chama sempre que o mesmo tem alguma dúvida.
Diana não merece padecer aos poucos no ninho da burocracia, sugada por assessores que não sabem dizer nada a não ser: “isso não é comigo, é com a Diana Prince”. Diana merece o palácio, o jornal, o chá, o batmovel e principalmente a linha vermelha, porque é mais atenciosa que seus assessores, mais ágil que o Garfield, e muito mais sábia que a Palmirinha.
     Dorme em paz, Diana. Amanhá o telefone tocará incessantemente e você esguichará sabedoria por todos os cabos de fibra ótica da cidade, trazendo alegria e alívio às almas dos milhares de mortais como eu, que são do tempo em que ainda se falava basic COBOL e por isso só conseguem confiar na voz tranquila e segura que emana do 7458.