Eu tive um professor de meia idade, calvo, cujo apelido era “Aeroporto
de Muriçoca”. Na minha infância, achava muito engraçado esse apelido:
“Aeroporto de Muriçoca”.
Para compreender a essência da expressão “Aeroporto de Muriçoca”, é
preciso que o leitor esteja adequado a uma das três seguintes situações:
primeiro, que tenha nascido no Nordeste, preferencialmente nos estados do
Ceará, Paraíba, Pernambuco e Piauí. Se este é o caso, o leitor logo saberá do
que se trata, e entenderá porque um homem calvo pode ser chamado de “Aeroporto
de Muriçoca”. Se o leitor não nasceu no Nordeste, é preciso que se adéque a uma
segunda situação: que seja usuário regular do bom e velho Google, pois assim
poderá digitar ali o vocábulo “muriçoca” e logo saberá que é sinônimo de
pernilongo e carapanã, mosquitinho chato, hematófago de hábitos noturnos (como
o Drácula) e de zumbido irritante, que sempre sussurra aos nossos ouvidos a mesma
intrigante pergunta — “tá soziiiiiiiiiim?”. Agora, se o leitor não nasceu no
Nordeste e nem teve a curiosidade Googleoriana de saber o que
é uma “muriçoca”, basta fazer um passeio pelo Aeroporto Pinto Martins em
Fortaleza.
Nunca fui um pessimista. Sinceramente acho que, se você está no inferno,
a melhor coisa a fazer é dar um abraço no Diabo, puxar um cigarro e perguntar:
— aceita? Mas se há uma coisa parecida com o inferno é o assédio das
“muriçocas” no Aeroporto de Fortaleza. Não só o assédio das “bichinhas”: o
ambiente contribui. É preciso ser uma pessoa de fé como um crente pentecostal,
um congregado mariano ou um espírita da federação pra suportar tamanha
provação. Da última vez que lá estive, tomei o cuidado de calçar meias,
usar jeans, cueca, e uma blusa de mangas compridas. Inútil! Elas
picam por cima da meia, mordem a bunda da gente por cima da calça jeans e
da cueca, por cima da manga da blusa, com a desenvoltura de uma agulha de
coletar líquido da medula óssea. Sem falar do pouso irritante na testa e no
lóbulo da orelha, acompanhado do zumbido característico.
Então, se a situação e essa, qual o segredo para se livrar de tão
terríveis representantes alados da fauna local? Simples. Nunca pare! Esteja
constantemente em movimento, andando por todos os lugares possíveis do
Aeroporto, enquanto o seu embarque não é autorizado ou o passageiro que você
veio buscar, não chega.
Ora, se você está nas dependências do Aeroporto de Fortaleza, andando de
um lado para o outro feito um soldado americano perseguido numa selva do
Vietnam, você poderá observar cenas cotidianas impagáveis, e sairá dali, se as
muriçocas não te levarem para o seu ninho, com uma bagagem a mais na viagem da
vida (sem querer fazer qualquer trocadilho com o fato de você estar num aeroporto).
Logo na entrada você sentirá um cheiro terrível de frituras, mais
precisamente de peixe frito. Há um restaurante de comida chinesa no primeiro
andar que proporciona esse honorável odor, impregnado em todo o ambiente.
Se você tiver sorte, conhecerá um legítimo acampamento africano, pois
por conta dos atrasos nos vôos para a África, os povos d’além-mar são obrigados
a esperar por mais de seis horas pelo chamado de embarque. Então, eles
organizam uma pequena sociedade tribal, onde há vigilantes de plantão enquanto
entre as cadeiras, uns comem e outros dormem no chão, sobre as malas e sob os
lençóis, cercados de embalagens por todos os lados, como muros de uma
fortaleza.
Mas não pare de andar, não se esqueça de que as “muriçocas” estão atrás
de você. Até porque, se você se esquecer, elas te lembram.
Suba a escada rolante (não se esqueça de andar ali também, pois ali,
teoricamente você estará parado e as “muriçocas” sabem disso), pois no primeiro
andar há uma enorme banca de revistas com um excelente atrativo visual para
passar o tempo. Às vezes a escada rolante está parada. Daí você sobe pela
escada convencional do meio, porque os degraus são mais baixos. Logo na saída
da escada você será abordado por dois brutamontes que tentarão te agarrar.
Desvie deles, mas não precisa fugir. São apenas vendedores de assinaturas de
revistas, que insistem em violar o seu espaço pessoal da forma mais invasiva
possível para te dar um exemplar de uma revista que já saiu de circulação nas
bancas e assim te convencer a fazer uma assinatura de Caras, Casa Cláudia ou
Carta Capital, conforme o perfil que eles julguem que você tem.
Continuando em direção à banca de revistas, você verá uma moça gritando
por você e esbravejando algumas palavras inteligíveis. Calma. Ela não está
grávida, o filho não é seu e ela não quer o reconhecimento da paternidade.
Tampouco vai te levar pro Ratinho pra fazer DNA. É apenas uma vendedora de
chaveiros personalizados. Ela tira sua foto e imprime num chaveiro para que
você veja sua cara de idiota todas as vezes que for entrar em casa ou ligar o
carro.
No caminho da banca, garçons tentarão te bater com o cardápio. Eles
correrão em sua direção tentando fazer com que você leia as promoções, nem que
para isso eles esfreguem o papel plastificado na sua cara ou tentem assoar o
seu nariz com ele. Faça como o Robinho: pedale! Garçons e “muriçocas” ficarão
no vácuo.
Sob nenhum pretexto entre nos banheiros. As “muriçocas” adoram aquela
aguinha parada do vaso sanitário e o cheiro de xixi com eucalipto.
Depois de se lamentar porque não conseguiu comprar nenhum livro na
banca, porque no Brasil os livros são caros, porque o governo não prioriza
conhecimento e leitura, enfim, de ter votado em quem votou, sendo obrigado a
sair de um lugar onde se vende letras e palavras com as mãos abanando, continue
sua jornada. As “muriçocas” nunca dormem!
Na volta, você passará novamente pelos garçons, pela moça dos chaveiros,
pelos brutamontes das revistas. Não olhe para trás. Se olhar, correrá o risco
de esbarrar num barco que tem ali. Sim. Um barco, ancorado em pleno Aeroporto
de Fortaleza. Não, meu amigo, minha amiga, eu não estou brincando! Tem um barco
no meio do aeroporto! Dentro dele tem dois piratas, manequins de camisetas,
bandanas, chaveiros, bonequinhos, todos com preços acessíveis para quem ganhou
na Mega e está a fim de rasgar dinheiro. São chaveirinhos de duzentos reais, canequinhas
de cento e cinquenta, cinzeirinhos de trezentos, coisinhas assim.
Sem parar por muito tempo (não perca o foco, amigo, você está fugindo
das “muriçocas” e elas são implacáveis), suba até o terraço. Use o elevador da
esquerda, pois o da direita trava as portas entre o primeiro e o segundo andar.
No terraço você verá a singeleza, beleza, e por que não dizer, pureza da
família fortalezense. Casais de mãos dadas se encantam pela beleza dos pousos e
decolagens dos pássaros de prata, enquanto suas crianças simplesmente destroem
o aeroporto. Pequeninos que moram em apartamento de oitenta metros quadrados
encontram agora um quintal improvisado digno dos deuses do esporte. Eles correm
à toda velocidade e freiam bruscamente com os pés, patinando com suas sandalinhas
de sola de couro sintético, como se estivessem sobre patins ou skates.
Fazem “estrela”, dão cambalhotas, mortais e saltos para trás — o bom e velho
“bunda canastra”. Meninos se jogam no chão enquanto suas mamães tentam
levantá-los como que estivessem arrancando seus braços num movimento brusco
para cima. Garotinhas choram porque o avião da vovó chegou e é preciso
recepcioná-la no andar inferior. Prostitutas procuram caucasianos na chopperia enquanto
que europeus procuram por agenciadores de prostituição infantil. Um senhor
resolve embarcar com a cara cheia de cerveja. Uma senhora reza na capela
ecumênica para que o avião não caia. E tome “muriçoca”!
Volte ao térreo, agora pelo elevador da direita (o da esquerda quando
você subiu) e ali você encontrará as vendedoras de passeios para Jericoacoara,
tentando convencer algum turista a fazer uma viagem de mais de quatrocentos
quilômetros no banco de trás de uma caminhoneta “L-200” ano noventa e nove;
escutará a voz da moça invisível do aeroporto alertando para o perigo de se
tomar um taxi que não é da cooperativa do aeroporto; verá corretores tentando
alugar casas de praias com seus notebooks abertos, mostrando
as fotos das casas a inquilinos temporários em potencial; verá ex-prostitutas
desembarcando da Europa, trazendo nos braços o seu filhinho europeu, geralmente
Pablo ou Enzo, passaporte perpétuo para uma vida de esposa no primeiro mundo;
verá os gringos olhando de forma maliciosa para as pernas das adolescentes de
família que ali estão para buscar algum parente, pois eles pensam que aqui é o
paraíso do sexo e toda mulher está disponível; verá agentes de locadoras
clandestinas tentando alugar FIAT Uno branco, ano noventa e
cinco, por trinta reais a diária com quilometragem livre; ou seja, verá o
inferno ainda nesta vida. A diferença é que no inferno não há pousos e
decolagens, mas com certeza tem “muriçoca”! Até porque se não tiver “muriçoca”
no inferno, eu não me incomodo com o calor — desde que não tenha “muriçoca”.
Assim, se você for ao Aeroporto Pinto Martins em Fortaleza, seja para
fins de embarque ou desembarque, chegadas e partidas, não se esqueça: vista seu
“cuecão de couro”, sua calça de mergulhador, sua jaqueta de motoqueiro, botas
“sete léguas”, luvas de raspa com reforço interno, capacete, cachecol e o
principal — use repelente!
E eu que pensava que o professor de meia idade da minha infância, calvo,
era o único “Aeroporto de Muriçoca” que havia.