sábado, 6 de outubro de 2012

AEROPORTO DE MURIÇOCA

PRÊMIO JORGE AMADO NA XIII EXPO7
PRÊMIO ANTONIO SALES NA XIII EXPO7


Eu tive um professor de meia idade, calvo, cujo apelido era “Aeroporto de Muriçoca”. Na minha infância, achava muito engraçado esse apelido: “Aeroporto de Muriçoca”.
Para compreender a essência da expressão “Aeroporto de Muriçoca”, é preciso que o leitor esteja adequado a uma das três seguintes situações: primeiro, que tenha nascido no Nordeste, preferencialmente nos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Piauí. Se este é o caso, o leitor logo saberá do que se trata, e entenderá porque um homem calvo pode ser chamado de “Aeroporto de Muriçoca”. Se o leitor não nasceu no Nordeste, é preciso que se adéque a uma segunda situação: que seja usuário regular do bom e velho Google, pois assim poderá digitar ali o vocábulo “muriçoca” e logo saberá que é sinônimo de pernilongo e carapanã, mosquitinho chato, hematófago de hábitos noturnos (como o Drácula) e de zumbido irritante, que sempre sussurra aos nossos ouvidos a mesma intrigante pergunta — “tá soziiiiiiiiiim?”. Agora, se o leitor não nasceu no Nordeste e nem teve a curiosidade Googleoriana de saber o que é uma “muriçoca”, basta fazer um passeio pelo Aeroporto Pinto Martins em Fortaleza.
Nunca fui um pessimista. Sinceramente acho que, se você está no inferno, a melhor coisa a fazer é dar um abraço no Diabo, puxar um cigarro e perguntar: — aceita? Mas se há uma coisa parecida com o inferno é o assédio das “muriçocas” no Aeroporto de Fortaleza. Não só o assédio das “bichinhas”: o ambiente contribui. É preciso ser uma pessoa de fé como um crente pentecostal, um congregado mariano ou um espírita da federação pra suportar tamanha provação. Da última vez que lá estive, tomei o cuidado de calçar meias, usar jeans, cueca, e uma blusa de mangas compridas. Inútil! Elas picam por cima da meia, mordem a bunda da gente por cima da calça jeans e da cueca, por cima da manga da blusa, com a desenvoltura de uma agulha de coletar líquido da medula óssea. Sem falar do pouso irritante na testa e no lóbulo da orelha, acompanhado do zumbido característico.
Então, se a situação e essa, qual o segredo para se livrar de tão terríveis representantes alados da fauna local? Simples. Nunca pare! Esteja constantemente em movimento, andando por todos os lugares possíveis do Aeroporto, enquanto o seu embarque não é autorizado ou o passageiro que você veio buscar, não chega.
Ora, se você está nas dependências do Aeroporto de Fortaleza, andando de um lado para o outro feito um soldado americano perseguido numa selva do Vietnam, você poderá observar cenas cotidianas impagáveis, e sairá dali, se as muriçocas não te levarem para o seu ninho, com uma bagagem a mais na viagem da vida (sem querer fazer qualquer trocadilho com o fato de você estar num aeroporto).
Logo na entrada você sentirá um cheiro terrível de frituras, mais precisamente de peixe frito. Há um restaurante de comida chinesa no primeiro andar que proporciona esse honorável odor, impregnado em todo o ambiente.
Se você tiver sorte, conhecerá um legítimo acampamento africano, pois por conta dos atrasos nos vôos para a África, os povos d’além-mar são obrigados a esperar por mais de seis horas pelo chamado de embarque. Então, eles organizam uma pequena sociedade tribal, onde há vigilantes de plantão enquanto entre as cadeiras, uns comem e outros dormem no chão, sobre as malas e sob os lençóis, cercados de embalagens por todos os lados, como muros de uma fortaleza.
Mas não pare de andar, não se esqueça de que as “muriçocas” estão atrás de você. Até porque, se você se esquecer, elas te lembram.
Suba a escada rolante (não se esqueça de andar ali também, pois ali, teoricamente você estará parado e as “muriçocas” sabem disso), pois no primeiro andar há uma enorme banca de revistas com um excelente atrativo visual para passar o tempo. Às vezes a escada rolante está parada. Daí você sobe pela escada convencional do meio, porque os degraus são mais baixos. Logo na saída da escada você será abordado por dois brutamontes que tentarão te agarrar. Desvie deles, mas não precisa fugir. São apenas vendedores de assinaturas de revistas, que insistem em violar o seu espaço pessoal da forma mais invasiva possível para te dar um exemplar de uma revista que já saiu de circulação nas bancas e assim te convencer a fazer uma assinatura de Caras, Casa Cláudia ou Carta Capital, conforme o perfil que eles julguem que você tem.
Continuando em direção à banca de revistas, você verá uma moça gritando por você e esbravejando algumas palavras inteligíveis. Calma. Ela não está grávida, o filho não é seu e ela não quer o reconhecimento da paternidade. Tampouco vai te levar pro Ratinho pra fazer DNA. É apenas uma vendedora de chaveiros personalizados. Ela tira sua foto e imprime num chaveiro para que você veja sua cara de idiota todas as vezes que for entrar em casa ou ligar o carro.
No caminho da banca, garçons tentarão te bater com o cardápio. Eles correrão em sua direção tentando fazer com que você leia as promoções, nem que para isso eles esfreguem o papel plastificado na sua cara ou tentem assoar o seu nariz com ele. Faça como o Robinho: pedale! Garçons e “muriçocas” ficarão no vácuo.
Sob nenhum pretexto entre nos banheiros. As “muriçocas” adoram aquela aguinha parada do vaso sanitário e o cheiro de xixi com eucalipto.
Depois de se lamentar porque não conseguiu comprar nenhum livro na banca, porque no Brasil os livros são caros, porque o governo não prioriza conhecimento e leitura, enfim, de ter votado em quem votou, sendo obrigado a sair de um lugar onde se vende letras e palavras com as mãos abanando, continue sua jornada. As “muriçocas” nunca dormem!
Na volta, você passará novamente pelos garçons, pela moça dos chaveiros, pelos brutamontes das revistas. Não olhe para trás. Se olhar, correrá o risco de esbarrar num barco que tem ali. Sim. Um barco, ancorado em pleno Aeroporto de Fortaleza. Não, meu amigo, minha amiga, eu não estou brincando! Tem um barco no meio do aeroporto! Dentro dele tem dois piratas, manequins de camisetas, bandanas, chaveiros, bonequinhos, todos com preços acessíveis para quem ganhou na Mega e está a fim de rasgar dinheiro. São chaveirinhos de duzentos reais, canequinhas de cento e cinquenta, cinzeirinhos de trezentos, coisinhas assim.
Sem parar por muito tempo (não perca o foco, amigo, você está fugindo das “muriçocas” e elas são implacáveis), suba até o terraço. Use o elevador da esquerda, pois o da direita trava as portas entre o primeiro e o segundo andar. No terraço você verá a singeleza, beleza, e por que não dizer, pureza da família fortalezense. Casais de mãos dadas se encantam pela beleza dos pousos e decolagens dos pássaros de prata, enquanto suas crianças simplesmente destroem o aeroporto. Pequeninos que moram em apartamento de oitenta metros quadrados encontram agora um quintal improvisado digno dos deuses do esporte. Eles correm à toda velocidade e freiam bruscamente com os pés, patinando com suas sandalinhas de sola de couro sintético, como se estivessem sobre patins ou skates. Fazem “estrela”, dão cambalhotas, mortais e saltos para trás — o bom e velho “bunda canastra”. Meninos se jogam no chão enquanto suas mamães tentam levantá-los como que estivessem arrancando seus braços num movimento brusco para cima. Garotinhas choram porque o avião da vovó chegou e é preciso recepcioná-la no andar inferior. Prostitutas procuram caucasianos na chopperia enquanto que europeus procuram por agenciadores de prostituição infantil. Um senhor resolve embarcar com a cara cheia de cerveja. Uma senhora reza na capela ecumênica para que o avião não caia. E tome “muriçoca”!
Volte ao térreo, agora pelo elevador da direita (o da esquerda quando você subiu) e ali você encontrará as vendedoras de passeios para Jericoacoara, tentando convencer algum turista a fazer uma viagem de mais de quatrocentos quilômetros no banco de trás de uma caminhoneta “L-200” ano noventa e nove; escutará a voz da moça invisível do aeroporto alertando para o perigo de se tomar um taxi que não é da cooperativa do aeroporto; verá corretores tentando alugar casas de praias com seus notebooks abertos, mostrando as fotos das casas a inquilinos temporários em potencial; verá ex-prostitutas desembarcando da Europa, trazendo nos braços o seu filhinho europeu, geralmente Pablo ou Enzo, passaporte perpétuo para uma vida de esposa no primeiro mundo; verá os gringos olhando de forma maliciosa para as pernas das adolescentes de família que ali estão para buscar algum parente, pois eles pensam que aqui é o paraíso do sexo e toda mulher está disponível; verá agentes de locadoras clandestinas tentando alugar FIAT Uno branco, ano noventa e cinco, por trinta reais a diária com quilometragem livre; ou seja, verá o inferno ainda nesta vida. A diferença é que no inferno não há pousos e decolagens, mas com certeza tem “muriçoca”! Até porque se não tiver “muriçoca” no inferno, eu não me incomodo com o calor — desde que não tenha “muriçoca”.
Assim, se você for ao Aeroporto Pinto Martins em Fortaleza, seja para fins de embarque ou desembarque, chegadas e partidas, não se esqueça: vista seu “cuecão de couro”, sua calça de mergulhador, sua jaqueta de motoqueiro, botas “sete léguas”, luvas de raspa com reforço interno, capacete, cachecol e o principal — use repelente!
E eu que pensava que o professor de meia idade da minha infância, calvo, era o único “Aeroporto de Muriçoca” que havia.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

ADOTE UM CÃOZINHO E SEJA FELIZ!

PRÊMIO JORGE AMADO NA XIII EXPO7

Era uma manhã de segunda-feira, daquelas tão comuns, que a gente nem presta muita atenção ao noticiário, porque já sabe que tem chuva no litoral, frio no Sul, calor no Nordeste, a oposição não concorda com a bancada governista e mais uma bala perdida deixou de sê-la porque encontrou alguém.
A atendente da padaria já havia colocado meu café com leite na mesa e eu aguardava o pão com margarina. Em minha frente, uma televisão daquelas tão grandes que a gente mede em polegadas e quando a gente diz quantas polegadas são, alguém diz: “foi cara pra caramba”. A definição de imagens era tão boa que eu cheguei a sentir o cheiro da torta de frango com palmito que a Ana Maria Braga estava ensinando fazer, já que ela mesma não faz.
Tudo parecia entediantemente normal, até que a apresentadora da revista feminina matinal global aparece em cena com um legítimo “vira-latas” numa coleira. Um cachorro “pé-duro” daqueles que você se abaixa simulando que vai pegar uma pedra e ele corre com medo. Um cachorrinho daqueles que os mosquitos teimam em perseguir porque sempre o associam com uma lata de lixo. Ana Maria contava a história daquela tão singela criaturinha de Deus, em tom de emoção e comoção, como só sua voz rouca e seu gestual parco são capazes de fazer. O bichinho, vítima de abandono e maus tratos, havia sido recolhido a um abrigo e então adotado por uma bem sucedida e solitária executiva paulistana, fato esse que fazia com que o cãozinho tivesse um sutil ar de riso por entre as presas outrora amareladas, mas agora embranquecidas por um clareamento dentário realizado num dos mais famosos pet shops do país. Ana Maria eufórica, conclamava a população brasileira a adotar um cãozinho e assim, acabar de vez com caninos em situação de abandono.
Louvado, glorificado e exaltado seja o nome de Ana Maria Braga. Gostaria de fazer coro à sua voz libertária nessa causa. Gostaria de engrossar o rol dos que com ela concordam porque é realmente muito triste ver um bichinho abandonado. E também, a adoção de um animalzinho de estimação não é uma via de mão única, mas uma via de duas mãos. O retorno é impressionante. Ele nos retribui com amor, carinho e companhia, artigos tão em falta na nossa sociedade contemporânea. Inclusive é bem mais fácil adotar um cachorrinho, por exemplo, do que adotar uma criança.
Adotar uma criança é muito chato. Quando você adota uma, tem logo que achar um nome e tascar seu sobrenome em cima do nome que você escolheu. Já imaginou? Aquela coisa chorando lá no abrigo e você registrando-a no cartório com o nome de “Francilayne de Almeida”? Ainda por cima tem que ter o maior cuidado na escolha para não traumatizar a futura adolescente. Sem falar no fato de que ela passa, imediatamente, a ser sua herdeira. Cachorrinhos, por exemplo, não são tão complexos. Você pode optar por um nome famoso como Mike Tyson ou Fiuk ou um nome ridículo como Pingo ou Bolinha ou ainda um nomezinho humano como Kelly ou Kátia e isso, sem sobrenome algum. Não é fantástico? E fique tranquilo! Quando você morrer ele não leva um centavo do que você tão penosamente acumulou.
Adotar uma criança é muito trabalhoso. Você tem que ter cuidado com o que ela vai comer. Há uma lista enorme de alimentos que você precisa saber da origem, do grupo a que pertencem e do efeito que causam ao serem ingeridos. Mamão, por exemplo, deixa o cocô mole. Então você precisa dar goiaba que deixa o cocô duro. Mas não dê muita goiaba, porque o cocô pode ficar duro demais. Se ficar, você dá um pouco de mamão. Também precisa complementar a alimentação com carboidratos, fibras, proteínas, legumes e verduras e depois de tudo, tem que fazer a criança arrotar, mas sempre atento porque ela pode golfar ao invés de expelir o ar simplesmente. Gatinhos, por exemplo, são mais simples. Você compra uma marca de ração compatível com seu modelo felino e ele vai comer aquilo para o resto da vida, apenas uma vez por dia, sempre no mesmo horário, sempre a mesma quantidade. Caso você fique entediado, pode-se alternar entre o sabor carne ou peixe. Seu bixano vai adorar!
Adotar uma criança requer cuidados especiais. Há uma caderneta com um número incontável de vacinas que você deve seguir à risca. São vacinas contra hepatite B, difteria, tétano, coqueluche, sarampo, rubéola, caxumba, meningite, poliomielite e rotavírus. Quando os dentes estão nascendo, aparecem cólicas, vômitos e diarréia, sintomas que vão fazer você enlouquecer às quatro da manhã, tentando lembrar o que fez de errado, já que cumpriu a caderneta de vacinas à risca. Cachorrinhos, por exemplo, precisam apenas de vacina contra raiva, coisa que o exército ou os bombeiros fazem de graça e em domicílio. E também, se eles contraírem uma doença mais séria, como calazar, por exemplo, em última instância você pode mandar sacrificar o bichinho com uma injeção letal, o que você não vai poder fazer com uma criancinha em hipótese alguma, sob nenhum pretexto, e nem quando ela crescer.
Adotar uma criança é algo muito ingrato. Eles crescem e se casam e você acaba velho e sozinho. Não se iluda, amigo, cedo ou tarde seu adotivo vai chegar diante de você de mãos dadas com uma companhia de sexo oposto ou não, querendo que você digira (como diria Collor) aquela nefasta presença de cabelos nos olhos,jeans rasgado no joelho, chicletes na boca, tatoo tribal e piercing. Se fosse um cachorrinho adotado, você poderia mandar castrar e pronto! Ele não menstrua, não ovula, não tem ereção, não fica no cio e o melhor: ele será só seu até o fim da sua existência (dependendo de quem empacotar primeiro).
Adotar uma criança é algo muito caro. Você precisa fazer matrícula, pegar a lista de material escolar, levar ao dentista, matricular na natação, no inglês, na informática, no balé, comprar chocolate, mandar para aDisney, pagar cursinho, comprar remédio para espinhas, compara colete para escoliose, comprar aparelho dentário, comprar lentes de contato, comprar tênis da Nike, comprar play station II, pagar psicólogo, teste vocacional e tudo isso para quê? Para ele te responder, te chamar de feio, de chato, de bruxo, te morder, te arranhar, berrar no supermercado, chutar sua canela, contar aos outros tudo aquilo o que ele ouviu você falar em segredo, falar merda, porra, filho da puta dentro da igreja, no aniversário daquela tia carola e quando crescer, sair de casa e nunca mais dar as caras, salvo para te colocar no asilo ou receber a herança? Um cachorrinho, por exemplo está sempre alegre e satisfeito. Chame-o para brincar e ele estará ali. Grite com ele e ele corre com o rabinho entre as pernas. Um cãozinho nunca te contradiz, nunca pergunta nada, nunca diz não e está sempre à disposição para te fazer companhia.
Ana Maria está certa. Para quê se importar com oito milhões de crianças abandonadas, sendo que dois milhões delas moram nas ruas, se você pode criar um gatinho e mandar blindar sua Explorer, para que as crianças abandonadas não atirem em você nos sinais de trânsito? Para que amar as pessoas, que nem sempre retribuem, que falham, que nos decepcionam, que pecam que erram, que nos abandonam, que nos traem, se podemos amar um hamster ou um lagarto ou até mesmo uma jibóia?
Ana Maria sabe as duas grandes verdades universais que regem a pós-modernidade. A primeira verdade é que relações humanas são complexas e egoístas e não dá para realizá-las sem troca, e trocar emoções, sensações, opiniões e ideologias só é possível com abnegação, humildade, mansidão e sacrifício e ninguém mais está disposto a isso hoje em dia. A outra verdade é que é mais fácil fazer de conta que não existem pessoas sofrendo lá fora enquanto eu coloco ração na tigelinha da Laika, do que olhar para elas como iguais a mim, ou seja, como seres humanos que têm os mesmos sonhos, anseios e desejos, embora envoltos em pensamentos diferentes e formas de ação distintas.
Doutora Ana Braga me ensinou nessa manhã de padaria, de mesmice, de vazio e solidão, de chuva no litoral e sol no interior, que o egoísmo compensa, desde que eu tenha um bichinho adotivo pra servir de muleta emocional. Que o abandono de crianças é um problema do governo que, por ser corrupto, não faz direito a sua parte. Que um cachorrinho abandonado é muito mais importante do que uma criança na moderna escala de valores sociais contemporânea, já que o retorno ao investimento é muito maior. Obrigado conselheira maior de todas as manhãs. Obrigado ninfa da sabedoria. Louvado, glorificado e exaltado seja o nome de Ana Maria Braga.
Gostaria de escrever mais e de não ser tão raso em minhas exposições, mas a bolinha está precisando de um banho e de duas porções de ração.

domingo, 30 de setembro de 2012

A LINHA VERMELHA DO COMISSÁRIO GORDON OU POR QUE A MULHER-MARAVILHA NÃO É O HOMEM-MORCEGO

PRÊMIO ANTONIO SALES NA XIII EXPO7

Eu tinha uma dúvida. Uma duvidazinha simples, reles, fácil de ser respondida, porém era daquelas dúvidas que ficam feito mosquito voando em volta do nariz da gente, nos fazendo irrequietos, agitados, desconcentrados e (Por que não dizer?) infelizes.
O dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal da minha universidade, ponto, be-erre, já havia me dito o que fazer, mas eu, genuíno espécime de transição do tempo em que ainda se falava basic COBOL para o tempo em que só se fala emWindows Vista, não confiei plenamente no que me dizia o portal. E se não for assim? E se houver outra possibilidade? E se eu acabar me prejudicando? É claro que o portal nunca erra! Um portal é mais que um oráculo, pois ali está o seu presente, passado e futuro! Todavia uma duvidazinha sussurrando palavras de duvidazinhas em nossa orelha, feito um mosquito voando em volta do nariz da gente, possui muito poder. O poder de nos fazer criar um caos, onde só havia um ventinho soprando; um tsunami, onde só havia uma goteira pingando. Ainda mais quando a certeza vem de um tal de dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal sei lá de quê, e adentra ouvidos e mente de alguém que é do tempo em que ainda se falava basic COBOL. Quando isso acontece, não há uma relação de confiança. Uma pessoa do tempo em que ainda se falava basic COBOL jamais confia cegamente num dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal. Para esses momentos, nada melhor que o bom e velho telefone. Telefone, aparelho eletroacústico que permite a transformação, no ponto transmissor, de energia acústica em energia elétrica e, no ponto receptor, a transformação da energia elétrica em acústica, permitindo desta forma a troca de informações, falada e ouvida, entre dois ou mais indivíduos. Esse não mente! Esse tem o poder de dar a informação precisa naqueles momentos de dúvida onde um dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal da só meia informação ou, no mínimo, deixa margens para dúvidas.
Liguei para o ramal 7609, pois dona Palmirinha iria me ajudar. A sábia senhora detém, na sua simplicidade, uma grande sabedoria. Garfield atendeu:
— Sala da sabedoria, bom dia!
— Palmirinha, por favor?
— Palmirinha está na xerox ou na biblioteca.
— Talvez você possa me ajudar....
Fui bruscamente interrompido como se estivesse falando palavras obscenas.
— Não, não. Só com ela mesmo...
— Mas eu ainda não falei, amigo.
— Mas é só ela quem resolve mesmo.
—Ela demora?
—Não sei. Liga pro 7440.
Mais oito notas musicais soaram no teclado do meu telefone. Ocupado. Tentei de novo a Palmirinha, no 7609, Garfield de novo na linha:
— Palmirinha chegou?
—Chegou. Palmirinhaaaaaaaaaa... telefone.
— Sala da sabedoria, bom dia!
— Eu tenho uma dúvida. Será que posso fazer assim e assim?
Palmirinha, no centro das luzes de sua sabedoria, me respondeu.
— Olha, eu acho que pode. Mas é bom você ter certeza. Nunca se sabe. Liga pra sala da justiça, no 7458, e fala com a coordenadora Diana Prince, a Wonderful Woman. Ela sabe.
Que palavras confortadoras! Que sabedoria! Tudo o que eu precisava ouvir nessa hora eram as expressões: “eu acho”, “é bom você ter certeza” e “nunca se sabe”.
Mais oito notas musicais soaram desarmônicas no teclado do meu telefone. O 7458 estava ocupado. Aflito, recorri novamente ao dáblio, dáblio, dáblio, ponto, portal da minha universidade, ponto, be-erre, porque ali, havia um labirinto que levava ao portal dos telefones. Uma passagem secreta conhecida por poucos que continha o segredo das comunicações telefônicas. Alguma digitação e alguns cliques no mouse e ali estava eu: diante da magia das comunicações, a página que continha os telefones dos respectivos setores de ajuda aos duvidosos. A página continha verdadeiras preciosidades, como ramais em sequência: 7452, 7453, 7454, ou 7353, 7354, 7355. Alguns mais complexos como 7886, 7887, 7888, 7889, e outros mais simples como 7457 e 7458. Liguei para o 7354: ocupado. Depois para o 7428: chamou e ninguém atendeu. Retornei ao 7354: chamou e ninguém atendeu. Tentei de novo o 7428: ocupado. Desesperado, liguei todos os números da lista que estava diante de mim, até que um atendeu:
— Tenho uma dúvida.
— Desculpa, dúvidas são respondidas no 7458, com Diana Prince.
— Mas está ocupado.
— Eu sei, está tudo congestionado por lá.
— E o que eu faço?
— Fica tentando.
— Mas eu estou tentando desde a manhã.
— Olha, amigo, eu não costumo fazer isso, mas como você parece ser gente boa, eu vou abrir uma exceção. Vou te dar o número do rapaz que trabalha vizinho à Diana Prince. Você liga para ele e manda chamar ela, mas não diz que fui eu quem deu o número. É no 7457.
— Muito obrigado, não sei como agradecer.
— Ora, não foi nada! Eu estou aqui para isso mesmo! Disponha!
Eu havia feito a minha primeira tentativa de resolução com Palmirinha, às 9 horas e 15 minutos, daquela linda manhã de sol, mas o sol já estava encerrando seu expediente, pois já eram 16 horas e 45 minutos. Resolvi encerrar também o meu expediente, com uma última ligação, dessa vez, para o lugar onde eu havia começado: o gabinete da Palmirinha, no 7609. Oito sons no teclado do meu telefone, e o Garfield já falava comigo:
— Sala da sabedoria, bom dia!
— Garfield, chama a Palmirinha, por favor.
— Palmirinha trabalhou de manhã. Quando ela trabalha de manhã ela folga de tarde.
— Você pode me ajudar? Tenho uma dúvida.
— Não. Só com ela mesmo.
— O que eu faço, então?
— Liga amanhã.
— Amanhã?
— Mas não liga de manhã, não. Liga de tarde. Quando ela trabalha num dia de manhã, no outro ela só vem de tarde. Liga depois das 16 horas que ela já voltou da xerox.
Indignado e desesperado, fiz uma última tentativa. Aquela que você sabe que não vai dar certo, mas não se incomoda porque passou o dia em tentativas vãs. Resolvi arriscar o 7458. Isso mesmo, Diana Prince. Eu já não tinha mais nada a perder, e afinal de contas, uma discagem a mais ou a menos, não ia fazer diferença. Mais oito sons desarmônicos. Dei sorte. Uma sorte imensa, dessas que a gente tem vontade de largar tudo e arriscar uma Mega. Diana Prince, ao vivo, do outro lado da linha.
— Diana falando, em que posso ser útil?
— Tenho uma dúvida.
— Eu já sei, e se resolve assim e assim.
Que impacto! Que precisão! Que pragmatismo! Que impavidez! Foi como ser ricocheteado como uma bala pelas pulseiras douradas, amarrado pelo laço mágico, ser jogado no avião invisível, ser transportado para Temiscira, a ilha do Paraíso, e ainda ter visto as amazonas filhas da grande Hera. Uma sensação de frescor me invadiu a alma, um sorriso se abriu em meu rosto e um brilho estranho tomou conta dos meus olhos. Voz trêmula e rouca eu disse ao telefone.
—Muito obrigado.
E chorei. Chorei porque Diana Prince não é Bruce Wayne. Isso mesmo. Diana Prince é uma burocrata cercada de incompetentes que não sabem dizer outra coisa a não ser: “isso não é comigo, é com a Diana Prince”. É como se tivesse um milhão de assessores, que na sua frente sorriem e dizem: “estamos com você para o que der e o que vier”, mas pelas suas costas dizem: “isso não é comigo, é com a Diana Prince”. Pobre Diana. Se ela fosse o Bruce Wayne não precisaria sair de sua casinha lá no conjunto, no seu Pálio cinza, e todos os dias rumar para o ninho da burocracia, e tentar resolver o problema dos pobres mortais, como eu, que ainda sou do tempo em que ainda se falava basic COBOL. Ela se assentaria no sofá do salão principal da mansão, leria tranquilamente o seu jornal, fumaria um bom charuto enquanto saborearia seu chá quentinho trazido pelo Alfred, tranquila porque saberia que o batmovel estará sempre na garagem da batcaverna, e só se moveria para resolver algum problema quando ouvisse soar a linha vermelha do comissário Gordon, que chama sempre que o mesmo tem alguma dúvida.
Diana não merece padecer aos poucos no ninho da burocracia, sugada por assessores que não sabem dizer nada a não ser: “isso não é comigo, é com a Diana Prince”. Diana merece o palácio, o jornal, o chá, o batmovel e principalmente a linha vermelha, porque é mais atenciosa que seus assessores, mais ágil que o Garfield, e muito mais sábia que a Palmirinha.
     Dorme em paz, Diana. Amanhá o telefone tocará incessantemente e você esguichará sabedoria por todos os cabos de fibra ótica da cidade, trazendo alegria e alívio às almas dos milhares de mortais como eu, que são do tempo em que ainda se falava basic COBOL e por isso só conseguem confiar na voz tranquila e segura que emana do 7458.