Era uma manhã de segunda-feira, daquelas tão comuns, que a gente nem presta muita atenção ao noticiário, porque já sabe que tem chuva no litoral, frio no Sul, calor no Nordeste, a oposição não concorda com a bancada governista e mais uma bala perdida deixou de sê-la porque encontrou alguém.
A atendente da
padaria já havia colocado meu café com leite na mesa e eu aguardava o pão com
margarina. Em minha frente, uma televisão daquelas tão grandes que a gente mede
em polegadas e quando a gente diz quantas polegadas são, alguém diz: “foi cara
pra caramba”. A definição de imagens era tão boa que eu cheguei a sentir o
cheiro da torta de frango com palmito que a Ana Maria Braga estava ensinando
fazer, já que ela mesma não faz.
Tudo parecia
entediantemente normal, até que a apresentadora da revista feminina matinal
global aparece em cena com um legítimo “vira-latas” numa coleira. Um cachorro
“pé-duro” daqueles que você se abaixa simulando que vai pegar uma pedra e ele
corre com medo. Um cachorrinho daqueles que os mosquitos teimam em perseguir
porque sempre o associam com uma lata de lixo. Ana Maria contava a história
daquela tão singela criaturinha de Deus, em tom de emoção e comoção, como só
sua voz rouca e seu gestual parco são capazes de fazer. O bichinho, vítima de
abandono e maus tratos, havia sido recolhido a um abrigo e então adotado por
uma bem sucedida e solitária executiva paulistana, fato esse que fazia com que
o cãozinho tivesse um sutil ar de riso por entre as presas outrora amareladas,
mas agora embranquecidas por um clareamento dentário realizado num dos mais
famosos pet shops do país. Ana Maria eufórica, conclamava a
população brasileira a adotar um cãozinho e assim, acabar de vez com caninos em
situação de abandono.
Louvado,
glorificado e exaltado seja o nome de Ana Maria Braga. Gostaria de fazer coro à
sua voz libertária nessa causa. Gostaria de engrossar o rol dos que com ela
concordam porque é realmente muito triste ver um bichinho abandonado. E também,
a adoção de um animalzinho de estimação não é uma via de mão única, mas uma via
de duas mãos. O retorno é impressionante. Ele nos retribui com amor, carinho e
companhia, artigos tão em falta na nossa sociedade contemporânea. Inclusive é
bem mais fácil adotar um cachorrinho, por exemplo, do que adotar uma criança.
Adotar uma criança
é muito chato. Quando você adota uma, tem logo que achar um nome e tascar seu
sobrenome em cima do nome que você escolheu. Já imaginou? Aquela coisa chorando
lá no abrigo e você registrando-a no cartório com o nome de “Francilayne de
Almeida”? Ainda por cima tem que ter o maior cuidado na escolha para não
traumatizar a futura adolescente. Sem falar no fato de que ela passa,
imediatamente, a ser sua herdeira. Cachorrinhos, por exemplo, não são tão
complexos. Você pode optar por um nome famoso como Mike Tyson ou Fiuk ou
um nome ridículo como Pingo ou Bolinha ou
ainda um nomezinho humano como Kelly ou Kátia e
isso, sem sobrenome algum. Não é fantástico? E fique tranquilo! Quando você
morrer ele não leva um centavo do que você tão penosamente acumulou.
Adotar uma criança
é muito trabalhoso. Você tem que ter cuidado com o que ela vai comer. Há uma
lista enorme de alimentos que você precisa saber da origem, do grupo a que
pertencem e do efeito que causam ao serem ingeridos. Mamão, por exemplo, deixa
o cocô mole. Então você precisa dar goiaba que deixa o cocô duro. Mas não dê
muita goiaba, porque o cocô pode ficar duro demais. Se ficar, você dá um pouco
de mamão. Também precisa complementar a alimentação com carboidratos, fibras,
proteínas, legumes e verduras e depois de tudo, tem que fazer a criança
arrotar, mas sempre atento porque ela pode golfar ao invés de expelir o ar
simplesmente. Gatinhos, por exemplo, são mais simples. Você compra uma marca de
ração compatível com seu modelo felino e ele vai comer aquilo para o resto da
vida, apenas uma vez por dia, sempre no mesmo horário, sempre a mesma quantidade.
Caso você fique entediado, pode-se alternar entre o sabor carne ou peixe. Seu
bixano vai adorar!
Adotar uma criança
requer cuidados especiais. Há uma caderneta com um número incontável de vacinas
que você deve seguir à risca. São vacinas contra hepatite B, difteria,
tétano, coqueluche, sarampo, rubéola, caxumba, meningite, poliomielite e
rotavírus. Quando os dentes estão nascendo, aparecem cólicas, vômitos e
diarréia, sintomas que vão fazer você enlouquecer às quatro da manhã, tentando
lembrar o que fez de errado, já que cumpriu a caderneta de vacinas à risca.
Cachorrinhos, por exemplo, precisam apenas de vacina contra raiva, coisa que o
exército ou os bombeiros fazem de graça e em domicílio. E também, se eles
contraírem uma doença mais séria, como calazar, por exemplo, em última
instância você pode mandar sacrificar o bichinho com uma injeção letal, o que
você não vai poder fazer com uma criancinha em hipótese alguma, sob nenhum
pretexto, e nem quando ela crescer.
Adotar uma criança
é algo muito ingrato. Eles crescem e se casam e você acaba velho e sozinho. Não
se iluda, amigo, cedo ou tarde seu adotivo vai chegar diante de você de mãos
dadas com uma companhia de sexo oposto ou não, querendo que você digira (como
diria Collor) aquela nefasta presença de cabelos nos olhos,jeans rasgado
no joelho, chicletes na boca, tatoo tribal e piercing.
Se fosse um cachorrinho adotado, você poderia mandar castrar e pronto! Ele não
menstrua, não ovula, não tem ereção, não fica no cio e o melhor: ele será só
seu até o fim da sua existência (dependendo de quem empacotar primeiro).
Adotar uma criança
é algo muito caro. Você precisa fazer matrícula, pegar a lista de material
escolar, levar ao dentista, matricular na natação, no inglês, na informática,
no balé, comprar chocolate, mandar para aDisney, pagar cursinho, comprar
remédio para espinhas, compara colete para escoliose, comprar aparelho
dentário, comprar lentes de contato, comprar tênis da Nike,
comprar play station II, pagar psicólogo, teste vocacional e
tudo isso para quê? Para ele te responder, te chamar de feio, de chato, de
bruxo, te morder, te arranhar, berrar no supermercado, chutar sua canela,
contar aos outros tudo aquilo o que ele ouviu você falar em segredo,
falar merda, porra, filho da puta dentro da igreja, no
aniversário daquela tia carola e quando crescer, sair de casa e nunca mais dar
as caras, salvo para te colocar no asilo ou receber a herança? Um cachorrinho,
por exemplo está sempre alegre e satisfeito. Chame-o para brincar e ele estará
ali. Grite com ele e ele corre com o rabinho entre as pernas. Um cãozinho nunca
te contradiz, nunca pergunta nada, nunca diz não e está sempre à disposição
para te fazer companhia.
Ana Maria está
certa. Para quê se importar com oito milhões de crianças abandonadas, sendo que
dois milhões delas moram nas ruas, se você pode criar um gatinho e mandar
blindar sua Explorer, para que as crianças abandonadas não atirem
em você nos sinais de trânsito? Para que amar as pessoas, que nem sempre
retribuem, que falham, que nos decepcionam, que pecam que erram, que nos
abandonam, que nos traem, se podemos amar um hamster ou um lagarto ou até mesmo
uma jibóia?
Ana Maria sabe as
duas grandes verdades universais que regem a pós-modernidade. A primeira
verdade é que relações humanas são complexas e egoístas e não dá para
realizá-las sem troca, e trocar emoções, sensações, opiniões e ideologias só é
possível com abnegação, humildade, mansidão e sacrifício e ninguém mais está
disposto a isso hoje em dia. A outra verdade é que é mais fácil fazer de conta
que não existem pessoas sofrendo lá fora enquanto eu coloco ração na tigelinha
da Laika, do que olhar para elas como iguais a mim, ou seja, como
seres humanos que têm os mesmos sonhos, anseios e desejos, embora envoltos em
pensamentos diferentes e formas de ação distintas.
Doutora Ana Braga
me ensinou nessa manhã de padaria, de mesmice, de vazio e solidão, de chuva no
litoral e sol no interior, que o egoísmo compensa, desde que eu tenha um
bichinho adotivo pra servir de muleta emocional. Que o abandono de crianças é
um problema do governo que, por ser corrupto, não faz direito a sua parte. Que
um cachorrinho abandonado é muito mais importante do que uma criança na moderna
escala de valores sociais contemporânea, já que o retorno ao investimento é
muito maior. Obrigado conselheira maior de todas as manhãs. Obrigado ninfa da
sabedoria. Louvado, glorificado e exaltado seja o nome de Ana Maria Braga.
Gostaria de
escrever mais e de não ser tão raso em minhas exposições, mas a bolinha está
precisando de um banho e de duas porções de ração.
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