quarta-feira, 3 de outubro de 2012

ADOTE UM CÃOZINHO E SEJA FELIZ!

PRÊMIO JORGE AMADO NA XIII EXPO7

Era uma manhã de segunda-feira, daquelas tão comuns, que a gente nem presta muita atenção ao noticiário, porque já sabe que tem chuva no litoral, frio no Sul, calor no Nordeste, a oposição não concorda com a bancada governista e mais uma bala perdida deixou de sê-la porque encontrou alguém.
A atendente da padaria já havia colocado meu café com leite na mesa e eu aguardava o pão com margarina. Em minha frente, uma televisão daquelas tão grandes que a gente mede em polegadas e quando a gente diz quantas polegadas são, alguém diz: “foi cara pra caramba”. A definição de imagens era tão boa que eu cheguei a sentir o cheiro da torta de frango com palmito que a Ana Maria Braga estava ensinando fazer, já que ela mesma não faz.
Tudo parecia entediantemente normal, até que a apresentadora da revista feminina matinal global aparece em cena com um legítimo “vira-latas” numa coleira. Um cachorro “pé-duro” daqueles que você se abaixa simulando que vai pegar uma pedra e ele corre com medo. Um cachorrinho daqueles que os mosquitos teimam em perseguir porque sempre o associam com uma lata de lixo. Ana Maria contava a história daquela tão singela criaturinha de Deus, em tom de emoção e comoção, como só sua voz rouca e seu gestual parco são capazes de fazer. O bichinho, vítima de abandono e maus tratos, havia sido recolhido a um abrigo e então adotado por uma bem sucedida e solitária executiva paulistana, fato esse que fazia com que o cãozinho tivesse um sutil ar de riso por entre as presas outrora amareladas, mas agora embranquecidas por um clareamento dentário realizado num dos mais famosos pet shops do país. Ana Maria eufórica, conclamava a população brasileira a adotar um cãozinho e assim, acabar de vez com caninos em situação de abandono.
Louvado, glorificado e exaltado seja o nome de Ana Maria Braga. Gostaria de fazer coro à sua voz libertária nessa causa. Gostaria de engrossar o rol dos que com ela concordam porque é realmente muito triste ver um bichinho abandonado. E também, a adoção de um animalzinho de estimação não é uma via de mão única, mas uma via de duas mãos. O retorno é impressionante. Ele nos retribui com amor, carinho e companhia, artigos tão em falta na nossa sociedade contemporânea. Inclusive é bem mais fácil adotar um cachorrinho, por exemplo, do que adotar uma criança.
Adotar uma criança é muito chato. Quando você adota uma, tem logo que achar um nome e tascar seu sobrenome em cima do nome que você escolheu. Já imaginou? Aquela coisa chorando lá no abrigo e você registrando-a no cartório com o nome de “Francilayne de Almeida”? Ainda por cima tem que ter o maior cuidado na escolha para não traumatizar a futura adolescente. Sem falar no fato de que ela passa, imediatamente, a ser sua herdeira. Cachorrinhos, por exemplo, não são tão complexos. Você pode optar por um nome famoso como Mike Tyson ou Fiuk ou um nome ridículo como Pingo ou Bolinha ou ainda um nomezinho humano como Kelly ou Kátia e isso, sem sobrenome algum. Não é fantástico? E fique tranquilo! Quando você morrer ele não leva um centavo do que você tão penosamente acumulou.
Adotar uma criança é muito trabalhoso. Você tem que ter cuidado com o que ela vai comer. Há uma lista enorme de alimentos que você precisa saber da origem, do grupo a que pertencem e do efeito que causam ao serem ingeridos. Mamão, por exemplo, deixa o cocô mole. Então você precisa dar goiaba que deixa o cocô duro. Mas não dê muita goiaba, porque o cocô pode ficar duro demais. Se ficar, você dá um pouco de mamão. Também precisa complementar a alimentação com carboidratos, fibras, proteínas, legumes e verduras e depois de tudo, tem que fazer a criança arrotar, mas sempre atento porque ela pode golfar ao invés de expelir o ar simplesmente. Gatinhos, por exemplo, são mais simples. Você compra uma marca de ração compatível com seu modelo felino e ele vai comer aquilo para o resto da vida, apenas uma vez por dia, sempre no mesmo horário, sempre a mesma quantidade. Caso você fique entediado, pode-se alternar entre o sabor carne ou peixe. Seu bixano vai adorar!
Adotar uma criança requer cuidados especiais. Há uma caderneta com um número incontável de vacinas que você deve seguir à risca. São vacinas contra hepatite B, difteria, tétano, coqueluche, sarampo, rubéola, caxumba, meningite, poliomielite e rotavírus. Quando os dentes estão nascendo, aparecem cólicas, vômitos e diarréia, sintomas que vão fazer você enlouquecer às quatro da manhã, tentando lembrar o que fez de errado, já que cumpriu a caderneta de vacinas à risca. Cachorrinhos, por exemplo, precisam apenas de vacina contra raiva, coisa que o exército ou os bombeiros fazem de graça e em domicílio. E também, se eles contraírem uma doença mais séria, como calazar, por exemplo, em última instância você pode mandar sacrificar o bichinho com uma injeção letal, o que você não vai poder fazer com uma criancinha em hipótese alguma, sob nenhum pretexto, e nem quando ela crescer.
Adotar uma criança é algo muito ingrato. Eles crescem e se casam e você acaba velho e sozinho. Não se iluda, amigo, cedo ou tarde seu adotivo vai chegar diante de você de mãos dadas com uma companhia de sexo oposto ou não, querendo que você digira (como diria Collor) aquela nefasta presença de cabelos nos olhos,jeans rasgado no joelho, chicletes na boca, tatoo tribal e piercing. Se fosse um cachorrinho adotado, você poderia mandar castrar e pronto! Ele não menstrua, não ovula, não tem ereção, não fica no cio e o melhor: ele será só seu até o fim da sua existência (dependendo de quem empacotar primeiro).
Adotar uma criança é algo muito caro. Você precisa fazer matrícula, pegar a lista de material escolar, levar ao dentista, matricular na natação, no inglês, na informática, no balé, comprar chocolate, mandar para aDisney, pagar cursinho, comprar remédio para espinhas, compara colete para escoliose, comprar aparelho dentário, comprar lentes de contato, comprar tênis da Nike, comprar play station II, pagar psicólogo, teste vocacional e tudo isso para quê? Para ele te responder, te chamar de feio, de chato, de bruxo, te morder, te arranhar, berrar no supermercado, chutar sua canela, contar aos outros tudo aquilo o que ele ouviu você falar em segredo, falar merda, porra, filho da puta dentro da igreja, no aniversário daquela tia carola e quando crescer, sair de casa e nunca mais dar as caras, salvo para te colocar no asilo ou receber a herança? Um cachorrinho, por exemplo está sempre alegre e satisfeito. Chame-o para brincar e ele estará ali. Grite com ele e ele corre com o rabinho entre as pernas. Um cãozinho nunca te contradiz, nunca pergunta nada, nunca diz não e está sempre à disposição para te fazer companhia.
Ana Maria está certa. Para quê se importar com oito milhões de crianças abandonadas, sendo que dois milhões delas moram nas ruas, se você pode criar um gatinho e mandar blindar sua Explorer, para que as crianças abandonadas não atirem em você nos sinais de trânsito? Para que amar as pessoas, que nem sempre retribuem, que falham, que nos decepcionam, que pecam que erram, que nos abandonam, que nos traem, se podemos amar um hamster ou um lagarto ou até mesmo uma jibóia?
Ana Maria sabe as duas grandes verdades universais que regem a pós-modernidade. A primeira verdade é que relações humanas são complexas e egoístas e não dá para realizá-las sem troca, e trocar emoções, sensações, opiniões e ideologias só é possível com abnegação, humildade, mansidão e sacrifício e ninguém mais está disposto a isso hoje em dia. A outra verdade é que é mais fácil fazer de conta que não existem pessoas sofrendo lá fora enquanto eu coloco ração na tigelinha da Laika, do que olhar para elas como iguais a mim, ou seja, como seres humanos que têm os mesmos sonhos, anseios e desejos, embora envoltos em pensamentos diferentes e formas de ação distintas.
Doutora Ana Braga me ensinou nessa manhã de padaria, de mesmice, de vazio e solidão, de chuva no litoral e sol no interior, que o egoísmo compensa, desde que eu tenha um bichinho adotivo pra servir de muleta emocional. Que o abandono de crianças é um problema do governo que, por ser corrupto, não faz direito a sua parte. Que um cachorrinho abandonado é muito mais importante do que uma criança na moderna escala de valores sociais contemporânea, já que o retorno ao investimento é muito maior. Obrigado conselheira maior de todas as manhãs. Obrigado ninfa da sabedoria. Louvado, glorificado e exaltado seja o nome de Ana Maria Braga.
Gostaria de escrever mais e de não ser tão raso em minhas exposições, mas a bolinha está precisando de um banho e de duas porções de ração.

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